História do "Lapa Azul"

A Guerra em Cores

Recentemente, uma série do canal de TV por assinatura The History chamou atenção por apresentar supostos filmes “inéditos” em cores da II Guerra Mundial: na verdade filmes em preto-e-branco colorizados artificialmente.

Entretanto, foi publicado em 2006 o livro fotográfico Sulle Orme di Mio Padre- In My Father’s Foxholes and Footsteps(Nas Pegadas e Trincheiras do meu Pai): um raríssimo e impressionante álbum-livro fotográfico ilustrado com fotos a cores tiradas pelo veterano Cruz F. Rios, do III Batalhão do 87th Regimento de Infantaria, da 10ª Divisão de Montanha (10ª DIMth) norte-americana que guerreou lado a lado com os brasileiros.

Cruz F. Rios combateu como atirador de morteiro 60mm durante a campanha, testemunhando diversos encontros com a FEB e trilhando, por vezes, caminhos idênticos aos dos brasileiros na Itália. O norte-americano e sua câmera eternizaram a guerra — às escondidas dos superiores — em fotos que parecem ter sido tiradas na  semana passada, tamanha a qualidade e grau de conservação.

Peça de Morteiro onde o Sd Cruz F. Rios faz a pontaria

O forte colorido real das suas imagens nos aproximam do conflito bem mais do que as esmaecidas e diminutas fotos que normalmente são vistas nos museus. Mais do que fotos raras, o testemunho pessoal de Cruz Rios desmonta certos mitos que insistem em povoar o imaginário coletivo da participação brasileira na guerra.

A 10ª DIMth foi a última divisão dos EUA a desembarcar na Itália. Era uma tropa de elite, composta em boa parte por esquiadores e montanhistas experientes que treinaram de forma intensa, por quase dois anos, em Camp Haley, nas Montanhas Rochosas do Colorado.Seus homens estavam acostumados às doutrina e tática de guerra na montanha, bem como o equipamento e armamento lhes eram familiares de longa data.

Ao contrário dos norte-americanos, nossa divisão não treinou em montanhas nevadas (onde há montanhas nevadas no Brasil?) Não havia sequer um campo de treinamento em área acidentada como existe hoje, por exemplo, em São João Del Rey. O treinamento da FEB teve lugar onde foi possível fazê-lo: no tropicalíssimo campo de instrução de Gericinó, no calor do Rio de Janeiro.

Nossa doutrina e armas eram de origem francesa. Tivemos de traduzir às pressas manuais de guerra do inglês para o português e contar com o auxílio de um punhado de instrutores dos EUA para mudar toda a nossa filosofia de guerra. Os novos armamentos e equipamentos nos foram entregues na Itália, para os homens do 1º e o 11º Regimentos de Infantaria chegaram às vésperas da entrada em combate.

O desempenho em combate da 10ª DIMth foi incontestavelmente formidável. Inúmeros veteranos brasileiros deram testemunho da coragem e do porte físico dos seus aliados, relembrando quando dezenas de “gigantes” americanos desciam rolando, já mortos, as encostas do Monte Belvedere, enquanto atacavam as posições alemãs montanha acima.

Destroços de blindados Sherman na encosta do Mte. Belvedere, perto de Corona. Brasileiros e norte-americanos haviam expulsado os alemães das elevações vizinhas poucos dias antes – Fevereiro de 1945

No Brasil, persistem opiniões amadorísticas sobre o desempenho da FEB na Itália. Um artigo maldoso da Folha de São Paulo, comentando o livro Barbudos, Sujos e Fatigados, teve a seguinte manchete : “Brasileiros Foram à Segunda Guerra sem Preparo”. Seria oportuno perguntar ao jornalista, autor da matéria, qual é o tipo de treinamento que prepara um homem — de fato — para o horror da guerra.

Por mais que se treine, a experiência de combate é uma singularidade, certamente a experiência mais intensa pela qual um ser humano pode passar. Cruz Rios em seu livro conta:

“Um dos meus companheiros de trincheira era casado e tinha dois filhos, quando a artilharia alemã começou a atirar e os projeteis passaram a cair ao nosso redor, meu companheiro de trincheira começou a tremer e não parava. Ele não conseguia se controlar, deixando-me extremamente nervoso.”

Diagrama da Operação “Encore”. A FEB (BEF) atua no flanco direito da 10ª DIMth

Em outra passagem (Pg. 25) ele narra:

“Na noite de 20 de fevereiro, o Coronel David Fowler, o comandante do 87th Regimento, deu ordens para verificarmos se tudo estava certo em nossa linha de frente, pois precisávamos estar prontos para receber um contra-ataque alemão no dia seguinte. O Major do nosso Batalhão recebeu ordens para checar tudo em nosso III Batalhão, e nossas instruções eram para atirar e matar tudo que se movesse. Então ele foi atingido por um tiro e morto por nossas próprias tropas, “yeah”.

Já imaginou se tal fato tivesse ocorrido na FEB? O Major seria o “mártir” da incompetência e “vítima inequívoca” do absurdo despreparo brasileiro.

Acidentes fazem parte da rotina no “front”. Não importa o grau de adestramento da tropa, a tensão e a adrenalina se encarregam de puxar o gatilho na hora errada. De fato, a tropa brasileira não foi um exemplo primoroso de disciplina militar. Rios conta dos preparativos para a limpeza do Vale do Marano, empreendida pelo seu Batalhão nos dias 2 e 3 de março de 1945, em Malandrone e Cimon della Piella, quando a FEB  instalou-se num dispositivo com a 10ª DIMth em seu interior: episódio conhecido como o “corredor da 10ª DIMth”.

Sd do 86º Regimento descansa durante o dia 22 de fevereiro, provavelmente na encosta do Mte. Belvedere

Na ocasião, Rios ainda era um novato na linha de frente, com menos de duas semanas de combate (sua unidade esteve em reserva na conquista do Monte Belvedere). Lá o americano teve contato com os brasileiros — provavelmente da 6ª Cia do 11º RI —  já calejados por mais de três meses de “front” e ainda efusivos com as recentes vitórias em Monte Castello e La Serra. Nesse episódio, o choque da cultura anglo-saxã com a brasileira foi pitoresco — muito embora o próprio Rios tenha ascendência latina. Entre parênteses, inseri alguns comentários explicativos:

“A ponte sobre o vale (malandrone) havia sido destruída e os tanques não conseguiam atravessar (o rio). Os engenheiros estavam tentando reconstruir a ponte mas os alemães a colocavam abaixo com fogo de artilharia. Naquela noite nós paramos lá. Os brasileiros também lá estavam. Eu lembro daquela noite, eles deviam estar muito felizes mesmo, porque faziam todo o tipo de barulho. Eu achei que aqueles caras não eram muito bem treinados. Parecia que eles iam de uma festa para outra festa, batendo metais (batucada, sem dúvida), fazendo todo o tipo de barulho. Os alemães iriam ouvir esse barulho cedo ou tarde. Nós, por outro lado, estávamos muito silenciosos.”(Pg. 28)

Ponte Bailey semi-destruida pela artilharia alemã perto do Mte. Terminalle 3/3/1945

Apesar dos fundados receios do soldado Rios, foi justamente a tropa festiva latina e a iniciativa do General Mascarenhas de Morais, em pressionar os alemães com tropas do 6º RI pela retaguarda, que muito auxiliou os norte-americanos a se livrarem de alguns apuros em combate e a atingirem o objetivo final da sua operação: a conquista do Monte della Croce.

Infantes da 10ª DIMth disparando contra posições alemães no Mte. Della Vedeta –  3/3/1945
Pelotão do 87º Regimento de Infantaria, da 10ª DIMth, durante a limpeza do Vale do Marano –  3/3/1945. Os brasileiros combatiam a poucas centenas de metros desse local

Está para nascer um soldado que volte da guerra dizendo que tudo lá correu às mil maravilhas: que a comida era ótima, o sargento educadíssimo, o treinamento moleza e o inimigo um gentleman. Por isso, na literatura autobiográfica da FEB há, naturalmente, críticas ácidas de soldados, graduados e até mesmo de oficiais do Estado-Maior às ações do comando brasileiro. São exemplos verdadeiros e idôneos da visão de guerra do soldado comum, mas que derrapam quando se propõem a criticar algo que pouco — ou nada — conhecem: estratégia militar.

Muito embora tais críticas devam ser lidas — ainda que com extrema reserva — o pesquisador cauteloso deve utilizar o insubstituível “filtro do bom-senso”, considerando o grau de conhecimento de cada depoente. Há que se colocar na balança a oportunidade literária de extravasar mágoas e rancores oriundos do deplorável tratamento que os veteranos receberam no pós-guerra, ou a perda de prestígio de alguns oficiais durante o conflito, como Floriano Lima Brayner.

As narrativas dos pretensos “donos da verdade”, com teor  denuncista, ora reproduzindo inúmeros episódios apócrifos como fez Leonércio Soares (Verdades e Vergonhas da FEB), ora deselegantes e ressentidos, como Floriano de Lima Brayner (A Verdade sobre a FEB) ao invés de melhor esclarecer os detalhes da campanha brasileira, serviram de base para que jornalistas moldassem a sua própria versão da guerra, notadamente com teor ideológico-revanchista contra o Exército Brasileiro.

As críticas ao Comando norte-americano também fazem parte do livro do soldado Rios, porém são elas radicalmente diferentes na forma e no conteúdo:

“Tudo estava pronto para a batalha. No plano, o III Batalhão manteria a posição e os outros dois batalhões nos ultrapassariam e atacariam o inimigo. Mas por uma razão ou outra, não aconteceu desse jeito. Nós atrasamos o ataque por três dias. E em todos esses dias nós fomos atingidos, duramente atingidos. A artilharia alemã nos atingiu continuamente do primeiro ao último desses três dias. O bombardeio era intenso e nós perdemos muitos homens lá. Eu sinto pelos homens que tiveram que sair para patrulhar o “front” ou enviar mensagens. Alguns de nós éramos obrigados a abandonar nossos “foxholes’ para evitar impactos diretos de artilharia  ou tiros de morteiro. Era um inferno para os homens do III Batalhão. Um real e verdadeiro inferno. Eu não sei quantos companheiros foram mortos ou feridos.” (Pg. 29)

Patrulha americana do 87º Regimento na Região de Sassomolare 4/4/1945. A ação brasileira facilitou a ação da 10DIMth na conquista do Mte. della Croce

Atraso idêntico aconteceu no início da ofensiva de primavera, quando a morte de Roosevelt  numa quinta-feira (12 de abril), seguida de uma sexta-feira (13 de abril), atrasou a partida dos ataques para o dia 14 de abril: sexta-feira 13 é  uma data onde, culturalmente, o norte-americano evita atuar, por pura superstição.

“A ofensiva era para ter início no dia 12 de abril, mas por algum motivo ou outro tiveram que atrasá-la. Em 13 de abril, se eu me lembro corretamente a morte de Roosevelt foi anunciada.” (Pg. 31)

Rios não procura culpados pela morte dos companheiros, ele sabe intimamente que “por uma razão ou outra” algo deu errado. Ele também não acusa seus superiores com algo do tipo: “O Comando atrasou o ataque”, ao invés disso diz: Nós atrasamos o ataque”: responsabilidades e glórias compartilhadas de forma serena e ponderada.

10ªDIMth
Cia da 10ªDIMth: tropa de elite dos EUA

O Brasil dos anos 40 fez o que pôde para armar, treinar e comandar a sua Força Expedicionária. Se não o fez melhor, deveu-se a uma série de fatores insuperáveis na ocasião: sua inexperiência e fraqueza bélica por manter-se — felizmente — pacífico desde a Campanha do Paraguai, 70 anos antes; por ser um país agrário, engatinhando na Revolução Industrial do século anterior, sem uma única usina siderúrgica; por ser uma nação com instituições atrasadas, imersa em uma ditadura que já durava 14 anos;  por ter uma infraestrutura de padrão subsaariano, sem estradas ligando seu próprio território, obrigando o viajante às Regiões Norte e Nordeste a deslocar-se para lá de navio, ainda com a ligação entre as duas principais cidades — RJ e SP — sendo feita por uma estrada de terra poeirenta ou lamacenta (conforme a estação do ano). Já os vícios na organização da FEB — feita por critérios políticos, acima de tudo — permanecem os mesmos até hoje: populismo e clientelismo. Enfim, excetuando ditaduras moribundas, como a cubana e a norte-coreana, um exército é tão rico – ou pobre – quanto o país que representa.

O Brasil poderia ter preparado melhor os seus soldados? Não há dúvida que sim. Sempre é possível melhorar. Mas o que precisa ser ressaltado no episódio não são as deficiências, mas a capacidade do brasileiro em ultrapassá-las, adaptando-se rapidamente às circunstâncias e cumprindo valorosamente o seu papel na II Guerra Mundial. O General Willis D. Crittenberger, comandante do IV Corpo de Exército dos EUA, ao qual a FEB integrava, assim se manifestou ao então General Mascarenhas de Morais:

“Os feitos da Força Expedicionária Brasileira, sob o vosso comando, durante a campanha do IV Corpo na Itália, terão um lugar proeminente quando for escrita a história da Segunda Guerra Mundial.”

Não se trata de ufanismo ou patriotada, como um mau brasileiro poderia questionar. Lutamos ao lado de uma divisão norte-americana com equipamento, armamento e treinamento em tudo superiores, mas nem por isso fizemos feio. Não lutamos nem melhor nem pior que eles. Lutamos em pé de igualdade. Basta ler a história da guerra sem aquele atavismo lamurioso que Nélson Rodrigues batizou de “Complexo de vira-latas”.

Muito embora tenha servido como soldado,  Rios evidencia uma maturidade e clarividência que ultrapassa a maioria dos jornalistas brasileiros que escrevem hoje sobre a FEB. Dos seus 19.780 homens, a poderosa 10ª DIMth teve 975 mortos, enquanto que a Divisão Brasileira de 25.334 homens teve 457 mortos: mais do que o dobro das fatalidades brasileiras, com efetivo 1/5 menor e quatro meses a menos de guerra. Olhando somente tal comparativo, Rios teria todos os motivos do mundo para crucificar seus comandantes por tamanhas perdas em relação à “mal-treinada” tropa sul-americana. Mas não o fez.  Em vez disso, Rios dá início ao seu livro com o seguinte parágrafo:

“Toda manhã, quando acordo, eu dou graças ao Senhor por outro dia. Eu fui verdadeiramente abençoado em poder alcançar o meu 87º aniversário, porque sei que há 60 anos eu encarei a morte diariamente. Muitos dos meus amigos queridos não tiveram essa fortuna.”

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Saiba mais sobre o último conflito mundial lendo os nossos livros:

2 respostas »

  1. belo artigo durval escrito com isenção e sem mediatismos
    belas fotos quanto ao programa do canal história pasou em portugal com o titulo “a cor da guerra” não sabia que os frames tinham sido pintados à mão(desconfiava)
    em portugal costuma-se dizer a esses arautos da desgraça pré anunciada
    ….QUEM VAI À GUERRRA DÁ E LEVA…
    abraços para todos inclusive aos da teoria da sogra e aos arautos da desgraça pré anunciada
    o amigo de portugal
    rui estrela
    ps-filho de combatente da guerra colonial, sobrinho de combatente da guerra colonial,bisteno de militar das campanhas ultramarinas do principio do séc xx,e sobrinho bisneto de combatente do CEP(corpo expedicionário português) nas trincheiras da flandres ,COM MUITO ORGULHO

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  2. Cruz cumpriu a exata função que teve meu tio-avô durante parte da campanha: no início ele foi fuzileiro-atirador, depois, pela maior parte do tempo (de 23 de novembro de 44 até maio de 45) atirador de uma peça de morteiro 60mm na 8.a Cia. do Regimento Sampaio.

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