História do "Lapa Azul"

O “Lapa Azul” no Inferno de Montese

Planejamento da Ofensiva de Primavera

Estavam os generais Aliados reunidos no PC de Castellucio, em 08 de abril de 1945, discutindo acerca da Ofensiva da Primavera, destinada a expulsar de vez os nazistas da península italiana. O General George P. Hays, Comandante da poderosa 10ª Divisão de Montanha norte-americana, havia recebido a missão de conquistar a cidade de Montese e as elevações que a circundavam por nordeste,  entre outros objetivos na sua zona de ação.  Durante a exposição da manobra da sua tropa, o general americano manifestou sua preocupação ante os desafios da missão que lhe foi atribuída. Nisso, intervém o General Mascarenhas de Morais, Comandante da Divisão brasileira, assessorado pelo Tenente-Coronel Coronel Humberto de Alencar Castello Branco e pelo intérprete da Divisão: o Major Vernon Walters. Mascarenhas sugere que seja deixado o encargo de Montese para a FEB.

Incrédulo, o Gen Hays agradece e pergunta desconfiado:

O Comandante da Divisão brasileira tem a certeza de cumprir essa missão?

Ao que Mascarenhas responde de bate-pronto:

Tem o Comandante da Divisão norte-americana a certeza de aproveitar o êxito da ação brasileira? 

A resposta espirituosa do brasileiro provoca uma calorosa salva de palmas dos presentes, aliviando a tensão do momento.

Mas a apreensão do Gen Hays tinha fundamento. Sabia ele da importância estratégica daquele setor para o ataque da sua Divisão. Era região de maior altitude em poder dos nazistas naquela frente de combate, dispondo de observatórios que devassavam toda a zona de ação do IV Corpo. Além do quê, era certo dos alemães empreenderem uma resistência deseperada, pois ali terminavam as últimas posições defensáveis do Eixo na região. Novas posições de defesa distavam 130 quilômetros para o norte, já nos Alpes. Se os alemães não detivessem os Aliados naquele local, toda a Itália estaria perdida.

O Ataque Aliado

A Ofensiva de Primavera começou tenebrosa. Marcada inicialmente para o dia 12 de abril, a neblina impediu o apoio aéreo às operações. Para complicar ainda mais a situação, na noite do dia 12 de abril chega a notícia do falecimento do Presidente Roosevelt e o dia seguinte era uma sexta-feira 13…

Finalmente, às 13:30 hs de 14 abril, o terreno calcinado e repleto de crateras da região de Montese foi o palco de um dos mais heróicos episódios registrados na história brasileira. Coube ao 11º Regimento de Infantaria, de São João del Rei – mais precisamente ao seu III Batalhão, o “Lapa Azul” – o encargo da ação principal. Dentro do batalhão,o escalão de ataque estava composto pela 8ª e a 9ª Cia: as protagonistas daquela que seria a mais sangrenta batalha da FEB em toda campanha.

Tive a honra de entrevistar vários integrantes dessa tropa, entre eles o Cel Sérgio, à época Comandante do 2º pelotão da 8ª Cia; Raimundo Nonato, Sgt da 9ª Cia e os soldados Firmo Gomes de Carvalho, Antônio de Pádua Inham e Antero Saint-Clair: todos estes fuzileiros do 2º pelotão da 9ª Cia.

O veterano Agostinho José Rodrigues narra no livro III Batalhão – O Lapa Azul  a partida do antigo pelotão que comandava (2º/8ª Cia), agora sob o comando do Ten Sérgio:

“A um simples gesto dos tenentes, os pracinhas deixaram seus abrigos…Erguem-se, a um mesmo tempo, na linha de crista e a meio corpo. E, agachados como podem, começam a descer rápidos colinas abaixo. Lá se vai o Tenente Sérgio, meu substituto no Segundo. Vejo-o acenar aos meus homens. Sei Disso. Pressinto dizer: “Mais rápidos, mais rápidos”! Magote neles! Distingo-os. Correm Marocco, Lair, Prates, Joãozinho, Randi, Fedorowicz, Uka, Kaminski, Sabino, Pereira…”

Morre um Bravo

O Soldado Oswaldo Ferreira Lage, do 2º Pel da 8ª Cia, deu seu testemunho da agonia do Sargento Randi no livro Histórias dos Pracinhas Contadas por Eles Mesmos:

” Também no dia 14, em Montese, o bravo sargento Randi tombou ferido perto de mim. Com grande dificuldade para falar, pediu-me uma caneta e água para beber. Não pude atender o seu pedido, visto que a ordem que tínhamos era para avançar a qualquer preço. Os feridos deveriam ficar para serem atendidos pelos padioleiros. Durante muito tempo  este acontecimento martelou o meu sub-consciente e, quantas vezes, me senti oprimido por um sentimento de culpa por não ter atendido o pedido daquele companheiro.”

Consta da Parte de Combate do Cmt do III/11º RI o seguinte texto:

“Anexo a esta parte uma bandeira nazista encontrada nas mãos do Sgt Orlando Randi, morto heroicamente quando do assalto a uma casmata inimiga que defendia o pavilhão em apreço. Este comando sela esta juntada aos troféus do Regimento como preito à memória deste herói da FEB.

Ass. Maj Cândido Alves da Silva, Cmt do III/Btl do 11º RI”

Perdas Civis

A população civil da cidade, mesmo abrigada como pôde nos porões, foi duramente atingida. O jornalista Ricardo Bonalume Neto escreveu em seu livro A Nossa Segunda Guerra:

“O que os filmes deixam de mostrar é o efeito da guerra na população civil. Montese foi a comuna da província de Módena mais devastada na guerra, diz o autor italiano Walter Bellisi. De 1.121 casas, foram destruídas 833. Até o fim de 1946, os feridos e mutilados – incluindo os que pisavam nas minas alemãs espalhadas pelo campo – passavam de 700. Os mortos – homens, mulheres, crianças – da cidade na guerra foram 189.”

Tropa brasileira em Montese

O Resultado Final do Combate

A vitória brasileira custou caro ao III Batalhão. Sobre Montese foi lançado o mais devastador bombardeio inimigo na Campanha da Itália, superado apenas pelo realizado sobre o desembarque Aliado em Anzio, em 1943. Só no 2º Pelotão da 8ª Cia, dos 41 militares que iniciaram a ação, em 14 de abril,  restaram apenas 14 ao final do combate. Nos demais pelotões da 7ª, 8ª e 9ª Companhias, as baixas foram semelhantes. No total, a FEB teve 426 baixas: o maior número, num combate, desde a Campanha da Tríplice Aliança.

Patrulha do 11º RI (Foto cedida gentilmente pela Sra. Zenaide Duboc)

Foto do Vet.  João Rodrigues da Costa, do 11º RI, que está com o telefone em mãos.

O vigor e o ímpeto da manobra brasileira impressionaram vivamente os oficiais Aliados. O 2º Tenente Luiz Paulino Bomfim conta:

“Eu pertencia a E2, comandada pelo Ten.Cel Amaury Kruel, que tinha a missão de atuar na área de Informações de Combate (Combat Information  Center), em estreito contato com a G2 do 4º Corpo de Exercito, sob o Comando do general Crittenberg …. por um ou dois dias todos na 10ª Div. de Montanha me cumprimentavam com calorosos ‘you felllows did all right’, ‘you Brasils are damn good soldiers’.”

Em seu Livro Montese – Marco Glorioso de uma Trajetória, O Cel Adhemar Rivermar de Almeida afirma que o Gen Crittenbeger – Cmt do IV Corpo de Exército – registrou da seguinte forma o ataque do dia 14 em seu Boletim Diário;

“A DI Brasileira foi a única Grande Unidade que cumpriu integralmente a missão recebida. As outras (92ª Divisão Americana, 1ª Divisão Blindada, A 10ª Divisão de Montanha e a 6ª Divisão Blindada Sul-Africana) pouco progrediram e sofreram grandes perdas. A Divisão Brasileira recebeu, dentro de Montese, só numa noite, mais granadas que todas as outras somadas, sem arredar pé das posições conquistadas.”

No planejamento da Ofensiva da Primavera, estava reservado ao IV Corpo um papel de mero coadjuvante e diversionário na estratégia Aliada. O esforço principal da Operação estava direcionado para o outro lado da península italiana, na costa do Adriático. O General Crittenberger deixa isso claro em seu livro: A Campanha ao Noroeste da Itália, onde recorda, orgulhoso, a inversão do papel de sua tropa: de coadjuvante à protagonista do rompimento da Linha Genghis Khan. Não foi por menos que a sua narrativa literária – extremamente sóbria – abre espaço para um belo elogio à Divisão brasileira.

Combate violento: Das 1.1.21 casas de Montese, 833 foram destruídas

A ação brasileira em Montese retribuiu, na mesma moeda, a façanha que  o 1º/86th da 10ª Divisão de Montanha havia realizado, nas escarpas do Riva Ridge, em proveito do ataque brasileiro, pouco antes da tomada do Monte Castello. Desta vez, coube aos brasileiros, por meio do “Lapa Azul”, a honra de iniciar a abertura da porta que levaria os Aliados ao Vale do Pó, possibilitando aos norte-americanos aproveitarem – brilhantemente, diga-se de passagem – o êxito da FEB.

Mais do que isso, a epopéia de Montese atestou o que o General Mascarenhas havia afirmado, sutilmente, ao General Hays, no PC de Castellucio: não duvide da capacidade da Divisão brasileira.

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Agradecimentos:

Esse post não teria sido escrito sem a prestimosa colaboração do 2º Tenente R1 Luiz Paulino Bomfim, que aos 89 anos permanece ativo, lúcido e com uma memória impressionantemente aguçada dos eventos citados.

À Sra. Zenaide Duboc, filha do veterano Maj Álvaro Duboc, que nos presenteou com uma rara edição do livro Histórias dos Pracinhas Contadas por Eles Mesmos, do seu pai, contendo a compilação de entrevistas junto aos pracinhas juizforanos, feitas nos anos de 1975/76 e 1981/1982.

Agradeço também a inestimável colaboração do Dr. César Campiani Maximiano com preciosas informações sobre a história do 11º RI e a manobra brasileira.

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3 respostas »

  1. Sr Durval, meu avô lutou na 8a cia do 11. Tenho algum material digitalizado que gostaria de compartilhar. É possivel?

    Sidney

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  2. um abraço muito especial para o Sr. 2ºtenente R1 Luiz Paulino Bomfim,que continue de boa saúde,e para todos que ajudaram o amigo Durval neste lindo “auxiliar de memória” sobre a FEB.
    um abraço do amigo de portugal
    rui estrela
    leiria
    portugal

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