História da FEB

As Duas Faces da Glória – Parte I: os alemães

Em 1985, foi lançado o polêmico livro “As duas Faces da Glória”, de William Waack, sobre a Força Expedicionária Brasileira. À época, o jornalista trabalhava como correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha, desde 1979.

Um dos méritos do livro foi divulgar uma série de informações e relatos até então desconhecidos do público. Waack foi talvez o primeiro pesquisador brasileiro a realizar a busca de informações sobre a FEB em arquivos alemães, norte-americanos, ingleses e italianos.

Outro mérito do autor, que merece ser destacado, foi a complexa localização de veteranos das unidades alemães que tiveram os brasileiros como oponentes, durante a II Guerra Mundial. Waack conseguiu entrevistar uma série deles, espalhados pela então Alemanha Ocidental.

Fig.1 – As Duas Faces da Glória: pioneirismo na pesquisa em arquivos alemães e entrevistas com veteranos da Wehrmacht

O autor relatou que os arquivos da 232ª Divisão de Infantaria alemã, referentes às tentativas de tomada do Monte Castello, foram destruídos num bombardeio a Berlim, em 1945. Mesmo assim, conseguiu disponibilizar registros pertencentes ao Estado-Maior alemão e à 114ª Divisão Ligeira: cartas topográficas, mapas de situação, arquivos do julgamento de Nuremberg e relatórios diversos. Um trabalho de pesquisa formidável.

A leitura da obra pode feita sem dificuldade, graças à linguagem clara e a boa sintaxe. A escrita em estilo jornalístico é fluida, apresentando ao leitor idéias perspicazes, baseadas na interpretação pessoal do material de pesquisa escolhido. Waack revela um talento precoce que futuramente lhe daria — com justiça, diga-se de passagem — o posto de âncora do Jornal da Globo.

Entretanto, se quanto à forma e pesquisa a obra pode ser considerada admirável, infelizmente seu embasamento histórico é inversamente proporcional. Aliás, seria uma proeza se o autor conseguisse apresentar uma obra de conteúdo sólido, sobre um tema tão complexo, durante o intervalo de tempo utilizado. Enquanto historiadores renomados levam, por vezes, quase uma década de pesquisas para escrever um único livro sobre a IIGM, Waack revela ter dado início ao projeto da obra meses antes, em 1984, lançando-a já no ano seguinte.

Dada a característica meramente informativa deste Blog, a análise do livro de Waack não descerá a pormenores, inclusive os que a metodologia de pesquisa histórica preconiza. Até porque, dissecar todos os aspectos contraditórios de “As Duas Faces da Glória” seria inadequado para um simples post.

1. Os alemães – A Wehrmacht de Waack

Logo de início, o autor procura desqualificar as divisões alemãs que a FEB enfrentou na Guerra e, por conseguinte, o mérito das vitórias brasileiras. Segundo ele:

“A FEB enfrentou nove divisões alemãs ou esteve em contato com elas, durante os meses que permaneceu na Itália: a 42ª Ligeira, a 232ª de Infantaria, a 84ª de Infantaria, a 114ª Ligeira, a 29ª Motorizada, a 334ª de Infantaria, a 305ª de Infantaria, a 90ª Motorizada e a 148ª de Infantaria. O leitor deve ter observado os ‘números altos’ da maior parte dessas divisões — para o especialista, isso indica que a unidade se formou já no final da guerra, às pressas, com recursos reduzidos e deficiência de tropas aptas” (Pg. 39).

Fig. 2- A Wehrmacht: segundo Waack, as divisões que a FEB enfrentou na Itália eram “deficientes”

Mais adiante, curiosamente, o próprio autor afirma que o General Eccart Von Gablenz (Fig. 3), comandante da 232ª Divisão alemã, já havia comandado uma outra divisão de infantaria: a 384ª Divisão alemã, na batalha de Stalingrado, ainda em 1942 (Pg 133): uma unidade de numeração superior a quaisquer das unidades com que a FEB se deparou. A “numeração alta” das unidades não é, portanto, determinante para classificar uma divisão segundo o seu poderio.

Fig. 3 – General Von Gablenz: apontado pelo próprio autor como o comandante da 384º Divisão alemã em Stalingrado, em 1942. Fonte: Axishistory.com

Em outra vertente, o livro procura descaracterizar a capacidade combativa da 232ª, com base numa suposta composição de faixa etária elevada. Entretanto, os informes do autor uma vez mais são contraditórios, quando afirma: ” A esmagadora maioria dos 9 mil homens da 232ª compunha-se de veteranos de diversas campanhas”  (Pg. 46). Ou seja, mesmo tendo a 232ª Divisão alemã sido formada em junho de 1944, sua espinha dorsal era composta por oficiais e graduados veteranos de diversas campanhas, inclusive do Afrika Korps e da frente russa, para onde Hitler enviou suas melhores tropas.

O autor prossegue nesse raciocínio, desta feita com relação aos mais jovens: “Apenas 10% do efetivo eram soldados bens jovens, de 17 anos, recrutados na região de Frankfurt.” (Pg. 46) Esse é um caso típico de menosprezo que embosca os aventureiros do tema II GM. Quando os Aliados desembarcaram na Normandia, por exemplo, encontraram boa parte das divisões alemãs compostas com efetivos de faixas etárias heterogêneas, que incluíam veteranos e jovens: uma formação comum para unidades com missão defensiva. Nem por isso o desembarque Aliado — especialmente em Omaha Beach — deixou de ser um dos episódios mais dolorosos da história militar dos EUA.

Fig. 4 – Prisioneiros da 232ª Divisão alemã: segundo o autor, “veteranos cansados”

Com base na experiência de guerra alemã, em especial a da I GM,  sua logística sabia recompor batalhões dizimados em novas unidades, mesclando a experiência de veteranos com o vigor da juventude. Já o fator idade, por si só, não significa muita coisa, pois um jovem com o dedo no gatilho de uma metralhadora pode ser tão ou mais mortal que um adulto.

Calcula-se que em Omaha Beach, no dia D, o soldado Heinz Severloh, de apenas 20 anos, foi o responsável por boa parte das 4.200 baixas norte-americanas no setor, disparando durante 9 horas seguidas cerca de 12.000 cartuchos da sua MG-42. Severloh ficou conhecido como a “Besta de Omaha” (Fonte: A Vida no Front).

Fig.5 – Heinz Severloh, um jovem de apenas 20 anos: a “Besta de Omaha”

A obra revela algumas informações particularmente interessantes sobre os oficiais da 232ª, em especial sobre o seu comandante, o General Gablenz: “O Barão foi um dos mais bem-sucedidos comandantes de tropa na frente de batalha da França… e, aos 49 anos, tornou-se em 1940, o mais jovem tenente-general do Exército alemão, um dos primeiros oficiais a ostentarem a Cruz de Cavaleiro sobre a Cruz de Ferro” (Pg. 54)

Todavia, o capítulo destinado aos alemães desvia-se do eixo temático da obra. Aborda detalhes menores da vida pessoal dos entrevistados no pré e pós-guerra, insistindo em afirmar que a maior parte dos alemães da 232ª desconhecia haver lutado contra os brasileiros. A intenção do texto é óbvia: tornar irrelevante a participação da FEB.

De fato, o repasse de informações do Comando alemão à linha de frente era problemático. Um do relatórios da 3ª Seção da FEB, feito com base no interrogatório de prisioneiros alemães logo após a batalha de Montese, revelou que 80% deles pensava estar lutando contra ingleses. Se tal desinformação foi deliberadamente premeditada pelo Comando alemão ou não, isso é assunto para um novo post. Contudo, não há dúvida de que a inteligência nazista acompanhava os movimentos da FEB em detalhes.

A propaganda psicológica que os alemães lançavam sobre nossas posições, ainda em dezembro de 1944, por exemplo (Fig. 6 e 7,  fonte: Cobra Fumando), prova de que o Comando alemão conhecia não só a nossa presença, como até mesmo a divisão regimental da FEB.

Fig. 6 – Panfleto de guerra psicológica alemã lançado sobre as posições brasileiras em 1944: detalhe para a identificação da composição regimental da FEB. De resto, propaganda nazista, esquizofrênica e antiamericana, repetida até o presente.
Fig.7 – Verso do panfleto: segundo um pracinha entrevistado, os panfletos eram utilizados pela tropa para atividades, digamos, menos nobres

Conclusão

Com relação às forças inimigas que a FEB enfrentou diante do Monte Castello, a obra minimiza a capacidade combativa da 232ª Divisão alemã, composta, na maior parte, de veteranos com quase 5 anos de experiência de combate, do seu comandante até os graduados — algo que nenhum brasileiro possuía.

Waack acerta quando menciona o poder combativo debilitado da 232ª — o que não era novidade alguma para o Exército Alemão nos idos de 1944-45. Porém, a missão dessa Divisão era essencialmente defensiva, limitada à ocupação de posições estáticas nos Apeninos, tarefa que exige muito menos tempo de preparação, esforço físico e a presença de recursos de toda ordem.

Mesmo que, supostamente, os alemães não tenham recebido o melhor treinamento (os que ainda não dispunham) e equipamento, estavam eles meses à frente do grosso da FEB. Os brasileiros do 2º e 3º escalões só chegaram à Itália no final de setembro de 1944, trazendo apenas a roupa do corpo, a bagagem pessoal  e  sem o treinamento específico para o combate.

Somente a 10ª Divisão de Montanha norte-americana — tropa de elite treinada e equipada para o combate em ambiente de montanha — sofreu 999 baixas durante a tomada da região fortemente defendida pela “deficiente” 232ª (entre 18 Fev e 05 Mar de 1945). As baixas sofridas pela Divisão norte-americana falam por si só.

Por fim, o leitor interessado em conhecer como os alemães da 232ª realmente enxergavam os brasileiros, deve procurar o relato dos seus veteranos, sem intermediários, como no livro Bombardeiros, Caças e Guerrilheiros (BIBILEX) Bomber, Jabos, Partisanen. Die 232. Infanterie-Division 1944/45″, de Heinrich Boucseinveterano da 232ª Divisão alemã, que lutou do primeiro ao último dia da II GM; em especial no capítulo “Die Brasilianer und der Monte Castello”: Os Brasileiros diante do Monte Castello.

Fig.8 – Bombardeiros, Caças e Guerrilheiros: a FEB vista pelos alemães da 232ª. Sem intermediários

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11 respostas »

  1. Waack agiu nitidamente com preconceito para minimizar o esforço da tropa brasileira, li o livro quando do seu lançamento e mantenho a impressão. Levar uma tropa brasileira para lutar na Itália em 1945 e se sair relativamente bem já foi um feito e tanto. Waack descendente de alemães, estudando na Alemanha anteviu uma forma de atingir no Brasil os militares logo depois do periodo militar no Brasil e produziu seu livro tendencioso e cheio conclusões apressadas.

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  2. Pois é, eu também tenho grande interesse em ler o livro mas confesso que essa resenha me deixou por demais desanimado em desembolsar qualquer valor para lê-lo, sabendo que irei me aborrecer com a leitura, acho melhor procurar outros títulos.

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  3. Eu “ia” comprar o livro do Waack. Mas, ao ler esta resenha, desisti. Como minimizar a participação d FEB. Que mania tem estes jornalistas da Globo em diminuir a capacidade dos brasileiros, em qualquer área. Amo meu Brasil! E conheci ‘pracinha!” que, a mim, narraram as batalhas travadas na Itália. Verdadeiros heróis! Para a Globo, heróis, são os BBB.
    Artur Cláudio da Costa Moreira

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  4. TENHO A VENDA O LIVRO:

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  5. Comprei e li o livro quando do seu lançamento. Era então um jovem 3º Sgt de Cavalaria com 3 anos de tropa, mas que lia sobre a IIGM desde a idade de 13 anos. Realmente o livro e interessantíssimo mas de cara notei incongruências, sobretudo no tocante a tentativa de minimizar o valor combativo das GU alemãs.
    Ora, no livro Bombardeiros, caças e guerrilheiros, o autor, combatente da 232ª informa que no deslocamento ferroviário até a Itália, a Divisão perdeu 4 FLAKs 88 novinhos em decorrência de ataque aéreo, indicando que a Divisão não estava assim tão carente de meios bélicos. Ademais, no mesmo livro que escreveu, Waak se contradiz, informando que grande parte dos alemães sequer sabiam que estavam lutando contra brasileiros, mas apresentando cópia de documento alemão exortando seus soldados a lutarem e que seria uma vergonha para o soldado alemão render-se ou sofrer derrota para os brasileiros.

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  6. Há 4 anos eu estava com essa de “O leitor deve ter observado os ‘números altos’ da maior parte dessas divisões” martelando na idéia…

    Bravo!
    Abraço!

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  7. Legal o artigo sobre o livro do Waack. Tenho essa publicação e concordo com vc quanto aos erros (intencionais ou não) na avaliação da capacidade do soldado alemão naquele front. Pareceu escrever o livro já com juízo de valor pré-concebido e não disposto a encontrar elementos de pesquisa que contrariassem sua convicção quanto ao baixo valor dos alemães e, por consequência, dos brasileiros.

    A leitura desse livro me causou grande mal-estar, admito. Fiquei revoltado com as conclusões sugeridas e não tinha como não ficar, principalmente sendo eu descendente de febiano.

    Ainda bem que trabalhos como o seu; o do veterano Boucsein (muito legal esse livro, eu também tenho); relatos de outros veteranos dos dois lados e trabalhos de pequisadores e historiadores vêm desmentir as conclusões do germanófilo (rsrsrs) Waack.

    um abraço

    sidney dantas

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