A FEB nas Escolas

O Tempo é o Senhor da Razão?

A comemoração do 70º aniversário da participação brasileira na II Guerra Mundial coincidiu com o aniversário de outro evento notável da História do Brasil: os 150 anos da Guerra do Paraguai.

Seria razoável imaginar que o longo tempo decorrido após os dois conflitos possibilitasse um registro histórico sólido acerca da ação bélica brasileira nas duas guerras. Todavia, isso não ocorreu no Brasil. Nesta semana, um grande jornal carioca publicou uma matéria  que ressalta o conflito de versões sobre a Guerra do Paraguai (link).  Pior, em certos casos, o trabalho de sucessivas gerações de historiadores foi substituído por versões elaboradas por amadores.

Até hoje a narrativa da Campanha da FEB continua sendo ignorada pelos currículos escolares nas suas diversas instâncias, ao mesmo tempo em que temas de relevância altamente discutível têm espaço garantido (link). Nas universidades, em determinados cursos de História, a participação brasileira na guerra é interpretada como um exemplo clássico da luta de classes e do conflito entre o capital e o trabalho. Segundo algumas destas versões, as “elites” teriam recrutado à força “as classes oprimidas”, mandando-as para a guerra a fim de usá-las como moeda de troca para a construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda.

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Memória da FEB e o patriotismo: ausências ilustres na educação brasileira.

Por sua vez, a Guerra do Paraguai costuma ser apresentada aos jovens com base nas versões espúrias retiradas por Júlio Chiavenato de uma obra do argentino León Pomer — um militante político exilado no Brasil (link). Segundo Chiavenato, a causa da guerra teria sido o interesse do capital inglês em destruir a indústria paraguaia. Em vários livros de História financiados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), o ditador Solano López é apresentado como o líder de uma nação socialista, enquanto Francisco Alves de Lima e Silva — O Duque de Caxias — sequer é citado Em alguns deles, o herói brasileiro é descrito aos jovens como um genocida.

Pergunta-se: por que essa é uma triste realidade na educação brasileira? Por que a exaltação das glórias militares é tão execrada pela historiografia nacional? A resposta a essas questões é de suma importância para o correto estudo da participação brasileira nas duas guerras.

Nos anos 90, Prof. Dr. César Campiani Maximiano colocou por terra a desculpa usual que atribui a ignorância sobre a jornada dos pracinhas às deficiências do sistema educacional. Numa pesquisa entre alunos da Universidade de São Paulo — uma das mais conceituadas universidades do Brasil — a esmagadora maioria dos universitários sequer conseguiu responder corretamente o que significava a abreviatura FEB.

Em seu trabalho, O Brasil na Guerra: um estudo de memória escolar, o Prof. Dr. Francisco César Alves Ferraz foi mais além, identificando as duas forças que colaboravam para “comprimir” a presença da FEB na memória escolar. Segundo Ferraz, uma primeira força, centrífuga, excluía a narrativa dos conflitos armados protagonizados pelo Exército contra inimigos de outras nações (holandeses, argentinos, uruguaios, paraguaios, alemães), valorizando cada vez mais aqueles em que as Forças Armadas regulares agiram contra revoltas e movimentos sociais internos. Outra força, centrípeta, atraía progressivamente novos conteúdos ao conjunto curricular, no espaço deixado pela expulsão das “histórias das batalhas”, destacando temas sobre movimentos sociais de classes subalternas e conflitos que traduzissem politicamente a contradição entre capital e trabalho.

Esta tendência historiográfica em descrever a história de forma negativa chamou a atenção do brasilianista norte-americano Stuart Schwartz. Ele a atribuiu a um suposto  pessimismo arraigado nos brasileiros (link).

“O pessimismo, no Brasil, é mais profundo do que se pensa. Fora dos momentos obrigatórios, há muito tempo o brasileiro deixou de ser otimista. Comparando os historiadores brasileiros com os americanos, por exemplo, nota-se uma diferença. O pesquisador americano procura no passado o que deu certo na sua História. Já o historiador brasileiro busca o que deu errado. Não quer estudar o que aconteceu de bom e de ruim, mas mostrar por que o Brasil nunca funcionou bem. Para ele, a independência não foi uma independência de verdade. A república também não é uma república. Os liberais não eram liberais, o progresso não era progresso e assim por diante. Isso vai além de qualquer discussão séria sobre os problemas reais do Brasil. É um modo pessimista de ver o país, definido, a priori, como um lugar onde nada dá certo.” [1]

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Stuart Schwartz: O pesquisador americano procura no passado o que deu certo na sua História. Já o historiador brasileiro busca o que deu errado.

Schwartz apontou a origem desse pessimismo no século XIX, no trabalho de Capistrano de Abreu,  intensificado na década de 20 do século seguinte com o livro Retrato do Brasil, de Paulo Prado — que definiu o país como um lugar apodrecido, onde toda tentativa de desenvolvimento estaria condenada ao fracasso. Segundo o norte-americano, estas obras construiram uma imagem que iria alimentar os grandes intelectuais do século XX,  formando a visão do país sobre si próprio.

Embora reais, os exemplos apontados pelo historiador parecem ser oriundos mais da interpretação pessoal dos autores citados do que conduzidos por uma linha historiográfica — mesmo porque, a sistematização de currículos só aconteceria várias décadas depois. Além disso, não são poucas as pesquisas internacionais que apontam o brasileiro como um dos povos mais otimistas do mundo.

As verdadeiras raízes desse pessimismo originam-se na segunda década do século XX. Foram elas plantadas por intelectuais marxistas que buscavam implantar a ditadura do proletariado nas sociedades ocidentais. O revolucionário Antonio Gramsci foi um expoente desse movimento. Desconsolado com o fracasso da revolução comunista na Itália, Gramsci escreveu atrás das grades a sua obra mais famosa: Cadernos de Cárcere, em que analisa o fracasso da revolução bolchevique nos países da Europa Ocidental. O italiano percebeu que  a tomada do poder no Império Russo e no Ocidente exigiam estratégias diferentes, visto a sociedade ocidental possuir fortes “posições”, marcadas pelo nacionalismo, pelas instituições, e pela base religiosa judaico-cristã. Gramsci formulou uma nova estratégia, destinada à tomada das “trincheiras” da sociedade ocidental.

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Antonio Gramsci e os seus Cadernos de Cárcere: combate ao nacionalismo.

Os postulados de Gramsci e de outros pensadores marxistas foram aperfeiçoados nos anos 30 pelos intelectuais da Escola alemã de Frankfurt, que se encarregou de disseminá-los no Ocidente.  Assim, a partir do final da década de 1950, as sociedades ocidentais foram gradativamente transformadas. O movimento da contracultura nos anos 60 foi alimentado por tais conceitos, que chegam até nós na atualidade sob disfarces variados (ideologia de gênero, liberação das drogas, desconstrução da família, combate à religião, entre outros).

Conforme o seu propósito explícito, a Internacional Comunista (Komintern) lutava pela abolição dos Estados Nacionais em prol de um mundo dominado pelo socialismo. Por isso, no campo historiográfico, qualquer episódio que de alguma forma exaltasse a memória do país-alvo deveria ser reescrito pelos simpatizantes  do Komintern com viés negativo. O patriotismo deveria ser banido. E assim foi feito com sucesso no Brasil durante os anos 80. O ufanismo (o otimismo quanto às possibilidades do país) passou a ser visto como algo deplorável e o ufanista tornou-se um pária no meio historiográfico — uma espécie de leproso intelectual.

As cadeias mentais estabelecidas por esse processo foram tão sólidas que acometem até algumas obras bem-intencionadas sobre os pracinhas. Os êxitos militares e o notável poder de superação do combatente brasileiro costumeiramente subordinam-se aos percalços vivenciados pela tropa durante a campanha e no pós-guerra. Não raro, o tom de algumas produções sobre a FEB é pessimista, melancólico – quase um velório.

Não resta dúvida de que a FEB enfrentou sérios problemas — qual exército não os teve? Entre tantas dificuldades, destacam-se a desmobilização açodada e o apoio aos veteranos no pós-guerra. É certo que tais passagens mereçam ser estudadas e discutidas, contudo, elas não resumem a jornada dos brasileiros na guerra.

Aqueles acostumados ao convívio com os febianos sabem que o negativismo não predomina em suas narrativas. Dotados da maturidade que só a passagem dos anos oferece, estes senhores de cabelos alvos atribuem as dificuldades vivenciadas aos percalços indissolúveis da vida humana. A certeza — e o orgulho — que a maioria deles guarda da aventura italiana é a de terem lutado pelo lado certo na guerra, dando a sua contribuição para construção de um mundo melhor. Os pracinhas são bem mais patriotas do que pessimistas.

Infelizmente, a passagem dos anos não trouxe uma razoabilidade semelhante à historiografia brasileira, incapaz de elaborar uma versão consensual a respeito um conflito ocorrido no século retrasado. Na prática, o pessimismo historiográfico nacional vai muito além de uma tendência ou de questões que envolvam a razoabilidade, pois ele nada mais é do que o resultado da aplicação dos preceitos de uma ideologia.

O tempo é o senhor da razão? No Brasil, parece que não.


[1] O País do Presente, entrevista com Stuart Schwartz, brasilianista da Universidade de Yale, Revista Veja, 21 de abril de 1999.

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