História do "Lapa Azul"

Crer & Destruir

Por Durval Lourenço Pereira


Os intelectuais não podem ser bons revolucionários;

eles são bons o suficiente para serem apenas assassinos.

 Jean-Paul Sartre, Dirty Hands

Walter Mattner era um secretário de polícia alemão em Viena, Áustria, em outubro de 1941, quando 2.273 judeus foram assassinados no gueto de Mogilyov. Foi quando ele escreveu à esposa, narrando sua experiência pessoal no episódio:

“Minhas mãos tremiam um pouco nos primeiros carros. Já no décimo carro eu mirava calmamente e atirava com justeza em várias mulheres, crianças e bebês. (…) A morte que lhe dávamos era boa e rápida. Os bebês voavam em grandes arcos e nós os reduzíamos a pedaços no ar, antes que eles caíssem nas valas e na água. Eu nunca havia visto tanto sangue, imundície e carne.”

O relato impressionante das atrocidades cometidas por Mattner e outros nazistas está incluso no livro Crer e Destruir – Os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista (Believe & Destroy), do belga Christian Ingrao.

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Crer e Destruir reconstitui a trajetória de oitenta intelectuais alemães, nascidos na primeira década do século XX, cujos estudos universitários eram o passaporte garantido para carreiras brilhantes como advogados, economistas, historiadores e filósofos. Entretanto, eles preferiram o engajamento nos órgãos de repressão de Hitler, em particular a temível SS. Ingrao pesquisou os mecanismos de cooptação política, científica e ideológica da ideologia nazista, tentando compreender como cidadãos de alto nível intelectual decidiram integrar uma das instituições mais assassinas da história da humanidade.

Vários desses homens integraram esquadrões da morte paramilitares, conhecidos como os Einsatzgruppen, responsáveis por assassinatos em massa. Como eles puderam arquitetar o extermínio de 20 milhões de seres humanos? Utilizando uma vasta fonte de arquivos (o livro foi baseado num trabalho de doutorado do autor), Ingrao seguiu a carreira escolar dos jovens até a universidade, passando pela participação no Sicherheitsdienst-SD (o Serviço de Segurança e Inteligência do Reich) e os autos da defesa durante os julgamentos em Nuremberg. Apoiado em uma minuciosa investigação nos arquivos do SD e das SS, o autor — também diretor do Institut de l’Histoire du Temps Présent e especialista em guerra e nazismo — retraça o destino desses intelectuais que formavam uma das principais elites de Hitler.

Crer e Destruir esmiúça o universo particular das redes militantes e universitárias onde os personagens do livro estavam entranhados, dissecando suas formas de pensar, de se relacionar com a guerra e o “mundo de inimigos” que, segundo eles, os ameaçava. O notável trabalho de pesquisa deve agradar os interessados no tema, embora não seja inédito.

Ainda em 1971, Peter Loewenberg abordou a relação entre os nazistas e suas experiências na I Guerra Mundial em The Psychohistorical Roots of the Nazi Youth Cohort. Mais recentemente, Michael Wildt escreveu Generation des Unbedingten (2003), analisando a mesma categoria de homens e situações de Crer e Destruir. O livro de Wildt é semelhante ao de Ingrao tanto na abordagem quanto nas conclusões. Isso para não falar no clássico de Hannah Arendt: Eichmann em Jerusalém (1963), no qual a autora descobriu em Eichmann, um dos engenheiros do Holocausto, não um monstro psicótico e pervertido, como muitos imaginavam, mas um homem ‘”terrível, terrivelmente normal”.

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Crer e destruir

Analisar a mentalidade desses homens e a motivação para a destruição é o ponto-chave do novo livro. Segundo concluiu o autor, a internalização do sistema de crença nazista foi uma questão de fervor, mais do que um cálculo político e ativista. Ingrao delimitou um conjunto de fatores que levaram ao Holocausto. Ainda que não seja original, sua conclusão é correta — porém genérica e adaptada aos moldes acadêmicos. Por isso, ao término do livro, o leitor tem a impressão de que faltou algo.

O desejo de revanche, oriundo de uma guerra perdida e suas humilhações decorrentes, é tão antigo quanto o homem. Isoladamente, ele não justifica o Holocausto. Por sua vez, as teorias conspiratórias criadas pelo regime em torno do “sionismo internacional” são por demais frágeis para serem assimiladas por homens supostamente esclarecidos. Governos despóticos, líderes autoritários e ditaduras geralmente são responsáveis por atrocidades, mas o nazismo transformou a prática do genocídio numa política de Estado conduzida por homens comuns — algo sem paralelo no mundo moderno ocidental.

O Shoá e os massacres perpetrados durante o conflito ficaram sem uma explicação convincente na obra, pois a mera caracterização dos judeus como “inimigos do regime” não implica, necessariamente, na eliminação física de homens, mulheres e crianças. Em seu mergulho no universo nazista, autor parece não ter tido fôlego suficiente para alcançar o leito rochoso do fato histórico, subestimando o instrumento que permitiu romper as amarras dos demônios interiores do ser humano. Ingrao talvez pudesse chegar a conclusões mais certeiras se houvesse ampliado o escopo da pesquisa.

O ódio ao povo judeu foi apenas uma das faces da violência sem limites dos teóricos nazistas e seus comparsas. Nos países ocupados pelo Eixo durante o conflito, por exemplo, para cada soldado alemão morto pela guerrilha, vinte ou mais civis costumavam ser arrancados de suas casas por tropas da SS e executados sumariamente em praça pública, diante da população aterrorizada — fossem eles judeus, cristãos ou muçulmanos. Embora os judeus tenham sido alvo de uma eliminação programada, de um modo geral o extermínio nazista não fazia acepção de raça, etnia ou credo.

Alguns sociólogos lançam parte da culpa na supressão da democracia, mas tal afirmativa carece de fundamento. Tida como um valor supremo no Ocidente, a força das urnas foi justamente o trampolim utilizado por Hitler para ascender ao poder em 1933, trazendo a reboque sua doutrina homicida. O “respeito à vontade da maioria da população” certamente daria ao líder alemão uma vitória folgada em qualquer sufrágio feito no Reich ao final da década de 1930.

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Mulher alemã (de costas, com a cabeça raspada) humilhada publicamente por relacionar-se com um judeu (de frente).

A semente da barbárie nazista é comum a outras ideologias tão ou mais genocidas. A fórmula totalitária utilizada pelo Partido Nacional Socialista alemão, suprimindo a liberdade de pensamento, é semelhante a que foi adotada pela União das Republicas Socialistas Soviéticas e por outros regimes assemelhados, como o chinês, o cubano e o norte-coreano. Não resta dúvida de que a supressão das liberdades individuais seja uma característica comum nos Estados totalitários, mas há outra questão intrínseca a esses regimes que historiadores como Ingrao evitaram destacar como ponto fundamental: o combate à herança judaico-cristã.

Apontado como causador da derrota alemã na I Guerra Mundial, o judaísmo foi o primeiro alvo dos nazistas, logo seguido da perseguição às denominações cristãs — algo mais do que esperado. Em Mein Kampf, Hitler expôs sua visão do Cristianismo como uma doutrina aliada do inimigo judeu. Segundo ele, “a religião mosaica é realmente nada mais do que uma doutrina para a preservação da raça judia”. No lugar da Cristandade, foi adotado o paganismo, trocando-se as comemorações tradicionais pelas ligadas às mudanças das estações. Casamentos e batismos foram substituídos por rituais pagãos e o Natal pelo solstício de inverno. A partir de 1939, até a palavra “Natal” foi proibida de figurar em qualquer documento oficial das SS. A adoção da suástica e os símbolos rúnicos das SS são exemplos visuais de um regime decidido a romper qualquer relação com o legado judaico-cristão. Em 9 de junho de 1942, Heinrich Himmler discursou à cúpula das SS em Berlim:

Teremos que lidar com o Cristianismo de maneira mais dura do que outrora. Devemos acertar as contas com este Cristianismo, a maior das pragas que poderia ter acontecido a nós em nossa história, a qual nos enfraqueceu em todo o conflito. Se nossa geração não o fizer, então eu acredito que irá arrastar-se por um longo tempo. Devemos superá-lo dentro de nós mesmos.

O integrante do Partido Nazista era orientado a declarar-se “crente em Deus” quando perguntado acerca da sua religião. Alguns estudos avaliam que a adoção do paganismo foi apenas a fórmula encontrada para diferenciar o regime do inimigo soviético ateu, pois a religião não era o centro das preocupações dos líderes do Reich. Segundo a crença nazista, Deus não era onipresente e pouco se importava com o cotidiano dos homens. Não haveria julgamento pelos atos de amor ou desamor ao semelhante em vida, mas pela força e coragem que os alemães demonstrassem ao “purificar” a raça ariana.

O Estado totalitário detesta concorrência. Para ele, é inadmissível a existência de uma instância superior, seja ela material ou espiritual. “Gott ist tot” (Deus está morto) repetia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, cuja obra inspirou Hitler e os teóricos do Nazismo. Por isso, na raiz do totalitarismo, seja ele nazista ou comunista, está a supressão da religião tradicional, dos  preceitos e freios morais que apartam o ser humano da bestialidade. Como disse Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski: “Se Deus está morto, então tudo é permitido”.


***

Christian Ingrao fez de Crer e Destruir uma obra perturbadora à consciência do homem contemporâneo, mostrando que a erudição e a intelectualidade não oferecem uma barreira capaz de deter o avanço da escuridão sobre alma humana. O alerta é válido hoje tanto para os europeus, às voltas com o crescimento da extrema-direita, quanto para os latino-americanos, embevecidos com o “socialismo do século XXI” — sedutor do eleitorado com as falsas benesses que o Estado todo-poderoso seria capaz de oferecer. Isso não acontece por menos.

O ressurgimento das ideologias totalitárias vem atender as carências de uma sociedade cada vez mais hedonista. Em tempos recentes, a busca da felicidade ultrapassou os limites da aspiração. Agora ela é um direito que o Estado — de novo ele — é obrigado a prover ao cidadão. Alcançar o mais elevado nível de realização pessoal — incluindo a satisfação financeira, profissional, material, sentimental e sexual — é o objetivo maior da sociedade moderna. Pouco importa que o Nirvana materialista seja inalcançável, mas ai de quem estiver no caminho dos postulantes. Nesse mundo surreal, hábil na relativização de valores, a defesa de qualquer princípio, mesmo os mais elementares — como o direito à propriedade, à vida, à liberdade de religião, ou à educação moral dos filhos — é vista como uma atitude fundamentalista.

A nós, brasileiros, cabe a reflexão quanto ao modelo educacional em vigor, particularmente nas universidades, que hoje enfatizam a formação de ativistas ao invés de bacharéis. Sob o disfarce de bandeiras “politicamente corretas”, o Estado avança pouco a pouco sobre as liberdades individuais. É justamente por isso que a obra de Christian Ingrao vem em boa hora.

Mesmo sem ousar penetrar “na barriga da fera”, Crer e Destruir é um livro que merece ser lido pelo aficionado pelo tema, mostrando de forma admirável como vários membros da elite intelectual alemã abdicaram da liberdade e vontade, colocando suas almas à disposição de uma utopia. Para o desapontamento dos ”progressistas”, o autor desnuda a pretensa sabedoria humana, incapaz de conter o seu lado obscuro, bem como a fragilidade das suas criações — como a democracia e outros modelos de governos. Mas essa não é a lição principal.

Embora terrível, o pesadelo nazista foi uma experiência repetidora de erros pregressos, pois sempre que a sociedade ocidental resolveu erigir uma nova ideologia ou governo, suprimindo a base moral judaico-cristã dos seus fundamentos, ela colheu o desastre. Fica no ar a questão: algum dia a origem do totalitarismo e da maldade humana será compreendida em sua plenitude?


Fontes: – Anna Maria Droumpouki on Believe and Destroy: Intellectuals in the SS War Machine. Disponível em: http://www.historeinonline.org/index.php/historein/article/view/245

– Jan Mieszkowski on Believe and Destroy : Intellectuals in the SS War Machine. Disponível em: https://lareviewofbooks.org/review/the-banality-of-intellect-christian-ingraos-believe-and-destroy

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