A perda de um ente querido normalmente se revela capaz de provocar mais reflexões sobre a vida do que a leitura de muitos livros. Ainda que inevitável, quase sempre ela vem acompanhada da surpresa. Por isso, quando recebi a notícia do falecimento do Major Ruy de Oliveira Fonseca, o mundo quase veio abaixo.
Na minha imaginação, o Major Ruy não era o veterano com idade provecta (97 anos), de corpo franzino, e que caminhava sempre amparado. Apesar de conhecê-lo de longa data, a imagem que cultivava do seu porte físico era oposta. Em nossas conversas por telefone, sua lucidez, inteligência e memória notável forjaram a imagem do tenente de infantaria jovem e cheio de vida, que retornou da Itália vitorioso após II Guerra Mundial. Assim, a sua morte causou um verdadeiro “choque de realidade”.

Procurando notícias sobre o falecimento na internet, consultei o principal jornal da cidade no dia seguinte ao seu enterro, onde encontrei a edição de domingo recheada das suas pautas corriqueiras: intrigas eleitorais, assaltos e furtos; na coluna social, matérias pagas com fotos de socialites auto-massageando o ego; na seção de esportes, notícias do time da cidade rebaixado para a 4ª Divisão do Campeonato Brasileiro; nos classificados, propagandas da venda de imóveis e veículos, além de anúncios de homens e mulheres vendendo o próprio corpo. Houve destaque até para o estudo de um juiz-forano sobre um tal pássaro formigueiro-assobiador do Poço de Antas. Contudo, nenhuma notícia sobre o falecimento do Major Ruy foi veiculada, nem ao menos num rodapé de canto de página ou no obituário.
Ao me ver triste e inconformado, minha esposa — sempre ela — decidiu consolar-me, revelando algo que estava diante dos meus olhos, mas que eu não enxergava — uma visão que parece loucura aos olhos dos homens: não havia o que lamentar. Deus me brindara com a amizade do Major Ruy durante anos. Como se não bastasse isso, sem que eu soubesse, o Criador me concedera a oportunidade do último adeus, trazendo o veterano à minha residência – ainda que debilitado fisicamente – poucos meses antes: Ruy viera despedir-se.

Sua revelação me fez sentir tal qual o personagem Neo acordando da ilusão forjada pela Matrix. Foi como se estivesse imerso numa realidade ilusória, chafurdado no universo da futilidade humana, onde as energias são drenadas continuamente para o vazio.
Estava procurando no lugar errado. Não seria nos jornais onde encontraria algo sobre o amigo que partira. Os olhos da mídia são os olhos do mundo, e o mundo só tem olhos para as suas coisas. Ruy de Oliveira Fonseca não fora político, jogador de futebol, milionário ou artista famoso: o tipo de gente que a mídia tanto idolatra. Paradoxalmente, foi ele um dos cidadão mais ilustres de Juiz de Fora: um dos 25.334 brasileiros que lutaram na Itália, durante a II Guerra Mundial — e o fez galhardamente — comandando o Pelotão de Petrechos Pesados da 4ª Cia do II Batalhão do 11º Regimento de Infantaria.
O Major Ruy representa a figura do cidadão patriota, voluntarioso e corajoso, que arriscou a vida pelo seu país e por seus ideais. Porém, o mundo normalmente despreza isso — a não ser que fareje lucro. O mundo enxerga apenas a casca externa do ser humano. Para o mundo, Ruy não passava de um velho cheio de velhas histórias de heroísmo e bravura, e a grande mídia não se interessa muito por elas, pois cultiva seus próprios valores: a juventude, o hedonismo, o prazer da carne e do consumo, o “eu” sempre em primeiro lugar; afinal, isso tudo faz sucesso e vende bem mais — patriotismo e civismo são conceitos ultrapassados.
Quando jovem, Ruy frequentou o Seminário São José por seis anos — era um homem de fé. Quem teve o privilégio de partilhar da sua amizade, percebia nele o olhar de quem enxerga muito além do que a maioria dos homens é capaz — além dos olhos do mundo. A frase final do seu Diário de Guerra, escrita quando estava no convés do navio que o trouxe de volta ao Brasil, prestes a desembarcar, é reveladora:
“Revisto-me de muita esperança e de muita energia para enfrentar o futuro que me aguarda. Será uma nova guerra e já estou preparado para ela. Como no Capistrano (local de treinamento da FEB), aguardo a ordem do Comandante Supremo da Vida: Em frente, marche!”.
O Tenente Ruy seguiu em frente e travou sua nova guerra, como marido e pai dedicado. Lutou, venceu, e então descansou.
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Saiba mais sobre o último conflito mundial lendo os nossos livros:
Categorias:História do "Lapa Azul"
Olá!
Também fiz um documentário com veteranos da FEB:
http://www.abrasivofilme.wordpress.com
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Que descanse em paz.
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Major Rui. Meu companheiro nos dias da Italia e da minha presidencia na ANVFEB, que não poderia ter feito o que fiz se não fora a sua ajuda constatnte. Era um homem grande como poucos. Bomfim
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Caros amigos,
Obrigado pelos elogios.
Além de uma despedida/homenagem ao amigo que se foi, o artigo serviu como veículo de catarse da minha indignação contra a superficialidade e futilidade da cultura de massa brasileira. Fiquei mais leve. Descobri que os valores mais caros ao ser humano raramente se encontram exaltados nos jornais ou na televisão. É perda de tempo tentar encontrá-los na mídia. Eles estão dentro de nós mesmos. Cabe somente a nós a responsabilidade de mantê-los vivos.
Forte abraço a todos!
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Lourenço meu amigo justa homenagem a quem tanto fez pelo pais. Hoje só sobraram os larápios, esfoliadores dos cofres públicos, bajuladores, “cumpanheiros” que sugam nosso país. Tenho somente uma filha e sempre penso o que será de meus netos, pois a cada dia me desencanto com a humanidade.
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não sabia da morte do nosso companheiro Mj Ruy e fiquei chocado Li com a notícia. Li com atençao tudo o que o Sr declarou na sua mensagem e faço minhas as suas palavras, pois são poucos os que consideram a nós que deixamos tudo e fomos lutgar na Itália. è menos um dos restantes, aquí em São João somos apenas 11 veteranops da FEB
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Parabéns, Coronel por tão bela e sincera matéria! O senhor, como sempre, buscando trazer à tona valores e seres que pontuaram a Terra com coragem, dignidade, humanidade e bravura. O “Lapa Azul” precisaria de maior divulgação para que pessoas de todas as idades, jovens e crianças reconhecessem os valores de brasileiros que lutaram com dignidade para defender sua Pátria, que levaram sua solidariedade aos habitantes famintos e sofridos por onde passavam, ratificando desde aquela época a imagem do povo brasileiro como acolhedor, humano, solidário, respeitoso. O Major Ruy, certamente, foi bem acolhido em sua nova Pátria Espiritual, pois cumpriu sua missão com dignidade e nobreza. Que ele descanse em paz!
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Gostaria de saber se há interesse em publicar o texto na Revista do Clube Militar. Aguardo o contato. Cel Balbi diretorevista@clubemilitar.com.br
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Muito bem dito. Bravo! Tempo levou os febianos e os outros veteranos de grande luta. Nos nao devemos ficar triste, mas alegre que eles tiveram a bravura de nos defender no momento certo.
Fica bem.
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Um grande amigo que nós perdemos e o Antonio ficou muito triste por mais um amigo dele que se foi. Que Deus o receba em sua nova morada. / Nadir
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Caro amigo.
Você escreveu esta maravilhosa mensagem para grande homem que foi o Major Ruy com o coração. Belíssimas palavras!
Descanse em paz nobre Guerreiro, grande herói da FEB!
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Eis aí mais uma grande verdade….. Onde está a valoriação mais acentuada destes nossos Herois??? Parabens a estes que com muita honra, escreven estes textos. Meu reconhecimento e continuo traballho corajoso!
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Tocante, Coronel. Parabéns pela matéria comovente e sincera. É sempre muito triste perder grandes amigos.
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Maravilhoso! Parabéns! Acho que descreve bem o sentimento de todos nós.
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