Círculo de Fogo
A Força Expedicionária Brasileira encontrou inúmeros desafios durante a campanha na Itália, particularmente durante o gélido inverno italiano de 1944-1945. Fala-se muito nas agruras em torno da conquista do Monte Castello e Montese, e pouco da luta dos pracinhas num setor do front encoberto pela poeira do tempo: o “Círculo de Fogo” — expressão popularizada pelo capitão Antorildo Silveira em seu livro: O Sexto Regimento de Infantaria Expedicionário Expedicionário (1947).
O “Círculo de Fogo” compreende parte do subsetor oeste da FEB, na Região da Emilia-Romagna, em torno da cidade de Marano. Possui cerca de 4,5 Km de extensão em sua base, delimitada pelo sinuoso Rio Reno, de Molinaccio até sua junção com o Rio Limentra, a oeste de Riola. Trata-se do apelido dado a uma reentrância montanhosa, em forma semelhante ao do arco, cujo topo é delimitado, aproximadamente, pela cota 882, seguindo pela linha de crista até a parede rochosa do espigão do Soprassasso. Das águas do Reno até o cume do “Círculo de Fogo”, existe um desnível de quase 250 metros — 30 metros a mais que a altitude do Morro da Urca, no Rio de Janeiro. O acesso ao interior dessa região se dá por caminhos estreitos, que serpenteiam morro acima. Até hoje o motorista precisa trafegar com cuidado nesses caminhos minguados e carentes de muretas de proteção, sob o risco de despencar em uma de suas inúmeras ribanceiras.
Os homens do 6º Regimento de Infantaria Expedicionária chegaram ao setor no início de novembro de 1944, com a missão de substituir as tropas de um grupamento tático da 1ª Divisão Blindada dos EUA — tropa veterana da campanha contra o Afrika Korps, presente no front desde Operação Tocha (desembarque no norte da África, em novembro de 1942) passando pelos combates de Anzio e Monte Cassino. Segundo o general Mascarenhas de Moraes, o grupamento vivenciava uma situação muito delicada, “razão por que o comandante do IV Corpo tudo envidou para salvá-lo do desastre iminente”.[1]

Com pleno domínio do terreno, os observadores alemães acompanharam a chegada da FEB, relatando o deslocamento de 90 caminhões, a plena carga, de sul para norte, e o retorno de apenas 65, parcialmente carregados.[2] Havia fortes razões para o interesse germânico. A posse dessa região era de vital importância para o controle do tráfego da Estrada 64, que liga Porreta Terme a Bologna: objetivo principal dos Aliados ao final de 1944. Uma vez conquistada a linha de elevações que a domina, estaria aberto o caminho para a tomada do importante nó rodoviário de Vergato, distante apenas sete quilômetros dali. Por tudo isso, os alemães não estavam dispostos a ceder um milímetro do terreno aos seus oponentes.
O Memorial da FEB publicará uma série de artigos sobre a lutas dos pracinhas no “Círculo de Fogo”. Entretanto, informações relevantes precisam chegar antes ao conhecimento do leitor exigente, tais como a localização exata dos eventos narrados. As operações militares nessa região foram narradas na historiografia com indicações topográficas e nomes de agrupamentos de casas (paese) que hoje não mais constam ou foram renomeadas nos mapas civis. As cartas topográficas Aliadas e alemãs da Campanha da Itália foram elaboradas com base num levantamento topográfico do Istituto Geografico Militare, efetuado no começo dos anos 1930. Por isso, quase 80 anos depois, é quase impossível visualizar-se tais ações num mapa contemporâneo. Da mesma forma, muitos filhos e netos dos veteranos, em visita à Itália, se ressentem da ausência de referências que lhes permitam visitar as localidades em que seus antepassados lutaram.
Nosso blog empreendeu um estudo de cartografia histórica, base para um trabalho de modelagem que reconstituiu a zona de ação da FEB por meio de um modelo 3D.



No alto da antiga posição defensiva alemã, descortina-se ao visitante uma paisagem maravilhosa do vale do Reno, pontilhado por casarões de pedra mais do que centenários, que testemunharam impassíveis a luta feroz, suportando os tiros e estilhaços até hoje encravados em suas paredes. Todavia, cabe alertar o turista físico ou virtual: não se deixe enganar pela aparência do “Círculo de Fogo”, hoje repleto de bosques frondosos e vegetação luxuriante, pois a região foi ocupada pela FEB ao final do outono do Hemisfério Norte, quando a vegetação já havia perdido suas folhas. Além disso, os alemães haviam se empenhado com bastante antecedência na preparação das instalações defensivas, desde o inverno anterior. Ordenaram a construção de abrigos, o corte de árvores, arbustos e a queimada da vegetação rasteira, utilizando o trabalho remunerado dos italianos da região.[3] Os campos de tiros haviam sido limpos bem antes da chegada dos primeiros combatentes sul-americanos, depois revolvidos pelas explosões de granadas de inúmeros calibres. Restaram troncos esparsos, retorcidos e enegrecidos pelo fogo, dando ao cenário uma aparência fantasmagórica, quase surreal: a face da guerra.
Inexistia um único local a salvo das vistas ou fogos do inimigo. Conforme alguns pracinhas costumavam exagerar, em tom de gracejo: “Se o alemão cuspisse lá de cima, ele acertava a gente lá baixo!”. De fato, os alemães, confortavelmente postados no cume das elevações dominantes, puniam com rigor qualquer indício de atividade adversária, fosse um movimento inadvertido durante o dia ou ruído suspeito à noite. Para tanto, empregavam artilharia, morteiros, atiradores de elite e até as raras aeronaves da Luftwaffe na Itália. Já a tropa nacional abrigava-se como podia nas dobras do terreno, metida em buracos insalubres escavados na encosta pedregosa. Há o impressionante registro fotográfico de um posto de comando, provavelmente de uma Cia, nas proximidades da Torre di Nerone, por nós escaneada da obra Do Terço Velho ao Sampaio da F.E.B., obra do Ten Cel Nelson Rodrigues de Carvalho (1952).



Por fim, o Memorial da FEB oferece ao estudioso uma oportunidade única: ouvir o testemunho de alguns dos infantes que ocuparam por meses aquele terreno ingrato. José Marino, fuzileiro da 9ª Cia do III Batalhão do 6º RI (o “Navalha”), é o destaque do nosso post de estreia. A companhia de Marino ocupou a região do Africco, a sudoeste de Castellacio e Ca D’Orsino, logo abaixo do platô de Braine. Atirador de uma peça de morteiros de 60 mm, ele conta como os brasileiros desbarataram um dos violentos “golpes de mão” germânicos. De forma inesperada e surpreendente, o valoroso pracinha nos confidenciou um episódio que guardou consigo por quase 70 anos — um segredo não incluso nos livros de História, que merece ser compartilhado com os admiradores da trajetória da FEB.
[1] Mascarenhas de Morais, A FEB pelo seu comandante. Bibliex, 2005, p. 98.
[2] Heinrich Boucsein, Bombardeiros, caças, guerrilheiros. Bibliex, 2002, p. 130
[3] Ibid. Há evidências de trabalho semiescravo em outras regiões da Itália, mas o livro do oficial da 232º Divisão de Infantaria Alemã está repleto de referências aos pagamentos em dinheiro efetuados à população civil por serviços diversos.
Gostou do artigo? Inscreva-se no blog!


Deixe um comentário