O Maior Dia da Nossa História
A comemoração do aniversário de 80 anos da chegada do 1º Escalão da Força Expedicionária Brasileira (FEB) à Itália (16 jul. 1944) deixou a desejar os que prezam pela memória febiana. Escassas e tímidas foram as iniciativas institucionais, bem como a difusão na mídia tradicional. Quase passou em branco o evento que há 80 anos (19 jul. 1944) o editorial na capa do Diário Carioca — um dos principais jornais brasileiros nos anos 1940 — chamou de “O maior dia da nossa história“.
J. E. de Macedo Soares, seu editor-chefe, escreveu o seguinte:
“O nosso Exército oferece o seu sangue pela libertação da humanidade. A nossa causa é a das democracias livres. Por isso o dia em que ela se afirma irrevogavelmente é, depois do da Independência, o maior da nossa história”.
O valor da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, bem como sua influência na trajetória do País, estende-se na esfera política, diplomática, econômica e psiscossocial — algo que exigiria um compêndio específico, tamanha a riqueza e complexidade das suas consequências. Este post trata de um caso específico: um breve e sucinto relato da influência da FEB, ainda em organização no Brasil, no fortalecimento do poderio bélico da Arma de Artilharia.

Ataque Simulado ao Rio
O dia 20 de maio de 1944, um domingo, amanheceu claro e lindo, descreveu o cronista Rubem Braga. Pouco depois das 9h, o presidente Getúlio Vargas chegou à Vila Militar (RJ) a bordo da sua lustrosa limousine negra: uma Lincoln KB 1934. Desembarcou na Escola das Armas, como era chamada a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), onde o aguardava o general Eurico Gaspar Dutra (ministro da Guerra), o general Mascarenhas de Moraes (Cmt da 1º DIE) e outras altas patentes do Exército.



O chefe do Governo tomou ligar numa Dodge Comando, com a flâmula presidencial tremulando ao vento, a caminho do Campo de Instrução de Gericinó. Ao lado dos seus ministros de Estado, além de grande número de autoridades nacionais e estrangeiras, civis e militares, ele testemunharia a maior demonstração de poder de fogo já vista no Exército Brasileiro.
O general Cordeiro de Farias, comandante da Artilharia Divisionária, montara um exercício simulando um ataque ao Rio de Janeiro, que deveria ser detido pelas Armas nacionais. Modernos equipamentos de transmissão via rádio, adjacentes ao Posto de Observação (PO) instalado no Morro do Periquito, ganharam fotografias que estamparam as capas dos jornais brasileiros — eram uma novidade. Cordeiro de Farias explanou aos presentes a manobra, com o auxílio de mapas, croquis, um microfone e alto-falantes.





Esse evento, de valor histórico subestimado, marcou notável transição da Artilharia da Força Terrestre. No final de 1943, das 510 peças da dotação de campanha da Arma, os modestos canhões Krupp de 75mm representavam 446 unidades, com seus rodados de madeira e tração por parelhas de equinos. Dessa vez, entrariam em ação os modernos Howitzer (obuseiros de 105mm) tracionados por viaturas, comprados dos norte-americanos graças às facilidades do sistema de arrendamento (Lend-Lease) oferecido por Washington.



Em vez de reduzidos projetis de 75mm, poderosos tiros de 105mm estavam à diposição do Exército Brasileiro, incluindo munição explosiva e fumígena, com espoletas instantâneas, de tempo ou retardo. Jamais houve tamanha evolução do poderio bélico nacional em tão curto espaço de tempo (menos de seis meses). Como resultado desse incremento, a antiga preocupação com a fronteira Sul praticamente desapareceria após a formação da FEB.
Percebe-se a nítida diferença entre os uniformes da tropa febiana encarregada do exercício (o simplório, porém prático, modelo B-1) e o bem cortado e justo traje das autoridades militares no palanque, com botas de cano alto e esporins, típicos de uma tropa hipomóvel. Assim como o material bélico, tanto o fardamento quanto a doutrina militar do Exército logo seriam modernizados.
Rubem Braga registrou a impressionante barragem de obuses lançada por 48 peças de quatro grupos, postados à retaguarda do PO, que passaram sobre “nossas cabeças com um ruído suave, como o de uma folha de bananeira farfalhando ao vento nordeste” e explodiram sobre alvos simulados na região de Capão Redondo.
Terminada a apresentação, Getúlio Vargas visitou a Central de Tiro do I/1º RAPC, grupo do tenente-coronel Hugo Panasco Alvim. Foi convidado a marcar na prancheta de cálculo um ponto qualquer, e, um minuto e cinco segundos depois, desencadeou-se bombardeio sobre o ponto assinalado.
Em seguida, o presidente visitou uma bateria do grupo do tenente-coronel Sousa Carvalho (I/2º ROAR 105mm), para cumprimentar os artilheiros e conhecer os novos materiais e sua munição. Seguiu-se um churrasco na região de Monte Alegre, onde Getúlio discursou de improviso.





O brilhante Rubem Braga encerrou seu artigo para o Diário Carioca com um parágrafo auspicioso:
[…] voltamos de Gericinó com a certeza de que os artilheiros do Brasil farão boa figura onde quer que forem — e eles nos disseram que estão impacientes para que chegue o dia em que vão graduar suas alças não contra os inocentes pontos brancos do Capão Redondo do Campo de Instrução, mas contra as posições do inimigo nazista. Esse dia está próximo.
Os obuseiros que entraram em ação em Gericinó até hoje equipam várias unidades operacionais do Exército Brasileiro. Foram manuseados por diversas gerações de artilheiros, ao longo de mais de 80 anos de bons serviços.
Por tudo isso, se o 16 de julho de 1944 foi o maior dia da História do Brasil, depois da Independência, o 20 de maio representou um marco da Artilharia nacional no século XX. Seu valor simbólico seria suplantado apenas por eventos de grande envergadura e relevância na Campanha da Itália.
Mas essa já é outra história.


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