Caminhos Sinuosos
O texto a seguir é um excerto do nosso nosso livro: Guerreiros da Província, em capítulo que trata dos antecedentes da criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB).
No início de janeiro de 1941, um hidroavião da Panair do Brasil pousou na Baía de Guanabara, agitando suas águas perto do canteiro de obras do futuro Aeroporto Santos Dumont. A aeronave trouxe Allen Haden, jornalista a serviço do Chicago Daily News e do New York Post, incumbido de abrir um escritório para esses jornais, bem como para 20 órgãos de imprensa de outras cidades dos EUA e do Canadá.
Ele servira por uma década no United States Foreign Service (órgão do Departamento de Estado responsável pela política externa). Aos 33 anos, elegante no terno bem talhado, seu distinto currículo incluía postos diplomáticos de destaque ocupados em Gênova, Madrid, Londres, Singapura e Buenos Aires. De olhar franco e penetrante, chegava ao Brasil como correspondente jornalístico — disfarce ideal para agir nas sombras.
Em 29 de setembro de 1942, estava prevista a vinda ao Rio do coronel Frank Knox, secretário da Marinha dos EUA, em visita de inspeção à Esquadra do Atlântico Sul. Três dias antes da chegada de Knox, Haden foi contatado com urgência por José Queiroz Lima, oficial de gabinete e secretário particular de Getúlio, para um encontro secreto no Palácio do Catete, sede do governo. Em geral, tais conversações sigilosas aconteciam à sombra das palmeiras imperiais dos jardins palacianos, longe de testemunhas e possíveis microfones escondidos. Prática corriqueira na politicagem nacional, o mandatário jamais se envolvia diretamente nas tramas de bastidores.
Queiroz pediu que Haden repassasse a orientação presidencial ao enviado de Washington, pois Vargas pretendia que o secretário da Marinha dos EUA “se convencesse de que a Marinha do Brasil precisava de pequenos e velozes barcos torpedeiros, mosquito boats e navios de guarda costeira que pudessem atuar como caça-submarinos, a despeito de qualquer opinião contrária dos almirantes e oficiais de alto escalão”. Eis um pedido no mínimo curioso em um país de navegação de cabotagem comprometida, sem contratorpedeiros ou cruzadores aptos para a escolta de comboios, carente de equipamentos de detecção dos U-boats e até de cargas de profundidade.
Homem Leal a Getúlio
Durou por volta de 90 minutos o contato entre Queiroz e Haden — que numa carta secreta a Knox descreveu o secretário como “um homem leal a Getúlio”. O americano chegou à conclusão de que o presidente preferia as embarcações pequenas porque seriam entregues ao comando de oficiais mais modernos, ao contrário das maiores, repassadas aos comandantes mais antigos. Vargas queria ganhar prestígio com os militares mais jovens, “diminuindo a influência dos oficiais de maior posto da Marinha”. Interesses pessoais sobrepujaram a segurança nacional. O chefe da Nação conspirava contra os seus oficiais-generais, mesmo com o Brasil imerso em plena Segunda Guerra Mundial.




Construir esse relacionamento com o baixo oficialato fortalecer-lhe-ia pessoalmente e contrabalançaria sua posição perante o Exército Brasileiro (EB). Queiroz também lhe confidenciou que “Vargas havia sido ameaçado algumas semanas atrás por uma coalizão do Exército”, e que “precisava buscar apoio em algum lugar”. O oficial de gabinete disse ainda que Getúlio estava “numa posição semelhante a Hirohito [o imperador japonês]: o Exército o pressionava, e a não ser que encontrasse suporte, teria de ceder à pressão do Exército [generais Dutra e Góes Monteiro]”. Haden viu essa colocação com reservas, pois há anos Vargas usava os dois generais “como bichos-papões para assustar os Estados Unidos, a fim de obter empréstimos e o apoio político que o tem mantido [no poder]”.
O experiente e poliglota diplomata identificou três fundamentos aparentes na mensagem de Queiroz:
a) outro exemplo dos sinuosos caminhos da política brasileira e do extremo cuidado de Getúlio em não desconsiderar qualquer canal, não importa quão humilde, para abrir seu caminho.
b) ele quer que você [Knox] tenha conhecimento dessas ideias antes que as reuniões com os almirantes o façam ir numa direção diferente.
c) ele quer ter certeza de que você esteja ciente dessa concepção antes de vê-lo.




Haden supôs que a entrega de unidades navais pequenas seria autojustificada como “frota defensiva”. Assim, a “inevitável reação argentina com o aumento de poder da Marinha brasileira seria facilmente apaziguada”. Entre outras questões, alertou Knox de que a entrevista talvez envolvesse um armadilha elaborada para “testar sua conexão pessoal” com o visitante.
A mensagem termina com Haden sugerindo futuro encontro solitário entre eles, sem mencionar a razão. Haveria algo mais a repassar, sensível em demasia para ser escrito? Ou a conversação serviria apenas para ratificar a estreita conexão entre ambos aos olhos do serviço secreto nacional, que certamente acompanhava de perto os visitantes?
O documento secreto enviado a Frank Knox foi descoberto pelo historiador militar Giovanni Latfalla, em pesquisa nos Arquivos Nacionais (NARA) dos Estados Unidos, e abre nova frente de pesquisa para o entendimento das relações Brasil-EUA, que culminaram com a criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB).
O correspondente gozava do mais alto prestígio em Washington, pois alimentava o secretário da Marinha (tratado de Dear Boss: seu antigo chefe no Chicago Daily News) com informações confidenciais por meio de um canal independente da Embaixada. No início de julho, os secretários da Guerra e da Marinha usaram um dos seus relatos como pretexto para pedirem a cabeça do embaixador Jefferson Caffery, com quem estavam insatisfeitos há algum tempo.
Allen Haden encerrou sua carreira em alto cargo na United States Information Agency (Agência de Informação dos EUA -USIA), e não resta dúvida do valor da sua opinião nos altos círculos dirigentes dos EUA, que contribuiu substancialmente para orientar a política externa americana em relação ao Brasil.
A manobra escusa, engendrada pelo ditador e levada adiante pelo assecla, esbarrou no astuto e calejado diplomata, que assessorou com maestria os seus superiores. Não foi o primeiro ardil e nem seria o último. Em breve, outra investida varguista pelos “caminhos sinuosos” encontraria flanco menos robusto da diplomacia norte-americana, que lhe permitiria concretizar seu ambicioso intento.
Mas essa é outra história.

A carta secreta de Allen Haden a Frank Knox faz parte do ótimo livro “Relações Militares Brasil-EUA, 1939-1943”, do historiador militar Giovanni Latfalla. A obra está sendo oferecida no valor de R$ 45 (com frete incluso). Pagamento por Pix (celular) 32999700607 @giovannilatfalla
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