O Major Russo 🤵
O texto a seguir é um trecho adaptado do nosso futuro livro sobre a FEB, que conterá as devidas referências bibliográficas.

Em meados dos anos 1980, certa publicação sobre a Força Expedicionária Brasileira (FEB) provocou enorme controvérsia no meio acadêmico e febiano — e ainda causa. A obra trouxe a público relatórios confidenciais produzidos pelo Brazilian Liaison Detachment (Destacamento de Ligação Brasileiro — BLD), organização criada pelo Exército americano para, entre outras incumbências, facilitar as ligações entre os militares americanos e brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial.
O BLD não foi o único a produzir informações sobre a expedição nacional. Diversos órgãos de informação estrangeiros produziram pilhas de relatórios sobre a situação militar brasileira e a preparação da FEB. Parte desse material foi desclassificada e colocada em domínio público nas décadas seguintes, mas a volúpia sensacionalista precedeu a análise criteriosa. Desconsideraram-se aspectos básicos da atividade de Inteligência, como a interpretação da credibilidade da fonte e da informação (presente na documentação sob códigos), bem como a necessária crítica interna e externa da papelada.
O Brazilian Liaison Detachment (BLD)
A história do BLD teve início em 12 de maio de 1944, quando o tenente Clarence J. Alameda voou do Rio de Janeiro para Nova Orleans, a fim de buscar oito praças para auxiliar no preparo da FEB. Escolheu-se a equipe com base na familiaridade dos seus membros com o idioma português, mas para os brasileiros tornou-se difícil compreender, por exemplo, a fala de um descendente de portugueses açorianos de forte sotaque. Uns sabiam um pouco de espanhol, outros só inglês.
O grupo chegou ao Rio de Janeiro por volta de 17 de junho, tarde demais para auxiliar no preparo dos integrantes do 1º Escalão (a tropa já estava em processo de marcação da bagagem, prestes a embarcar). Pouco houve de construtivo no trabalho em conjunto nas duas semanas subsequentes, pois, segundo os americanos, gastou-se grande parte do tempo “em solenidades de despedida” — observação errônea do BLD, visto que o último desfile da FEB para o povo carioca aconteceu em 24 de maio. Os estrangeiros reclamaram da proibição de deixarem o aquartelamento três dias antes do embarque, enquanto os “brasileiros eram livres para ir e vir conforme quisessem”. Talvez ignorassem como funcionavam as “tochas”, imaginando que houvesse algum tipo de discriminação específica contra eles.
Houve testemunhos simpáticos à interação com os graduados estrangeiros e veteranos na tropa, mas, com relação aos oficiais, a opinião mostrou-se francamente oposta. O coronel Lima Brayner, chefe do Estado-Maior da FEB, declarou que
“os jovens americanos, como oficiais da reserva, eram de modesta formação. Não tinham sequer experiência de guerra. Apenas conheciam a manipulação de engenhos que os nossos iriam empregar na luta. […] Eles não entendiam nossa gente. E os nossos, com requintes de resignação, suportavam tudo, inclusive a mediocridade de simples oficiais da reserva, alguns deles grosseiros e pouco cordiais, resultando daí, como não podia deixar de ser, constantes desentendimentos”.
Brayner chamou esse conflito de “uma ‘batalha’ especial no front interno”.
Doutor Russo no US Army
Um oficial quarentão recebeu o encargo de coordenar os entendimentos com os brasileiros no Teatro de Operações do Mediterrâneo. Harold Joseph Russo (1903-1989) formou-se na Universidade de Yale (1924), na qual concluiu o mestrado em literatura francesa e italiana. Obteve o doutorado pela Universidade da Pensilvânia com a dissertação Morphology and syntax of ‘Leal Conselheiro’ (Morfologia e Sintaxe do ‘Leal Conselheiro’) — estudo filológico da obra quatrocentista portuguesa sobre ética e moral. Durante a década de 1930, atuou como professor e chefe de departamento em várias escolas da Nova Inglaterra. Em 1942, quando o Tio Sam solicitou seus préstimos, Russo deixou a cátedra para o comissionamento no Exército, a serviço do Escritório de Serviços Estratégicos (OSS).

Depois de uma passagem pelo Brasil, o acadêmico viajou para a Itália ao encontro da equipe de observadores brasileiros no QG do V Exército, onde os conheceu em 20 de março de 1944. Não se mostrou satisfeito com esse contato durante os dois meses seguintes. Em 22 de maio, escreveu carta pessoal ao general-brigadeiro Robert Walsh, do QG americano em Recife. Alegou no documento, de classificação Top Secret, que utilizava esse canal para “evitar as implicações da correspondência oficial”. Sugeriu que Walsh solicitasse a Dutra o regresso dos três militares brasileiros da equipe, sob o pretexto de que, embora houvesse pouco tempo disponível, a presença deles no Brasil “facilitaria muito a preparação da Força Expedicionária Brasileira”. Mas a verdadeira razão era outra.
O major Russo manifestou profundo desagrado em relação à falta de dados sobre as características do contingente febiano que estava por vir: “Devido à política do ministro da Guerra, esses oficiais estão desinformados acerca dos empreendimentos do seu Exército. […] Eles recebem bem mais informações, e informações mais precisas relativas ao Exército Brasileiro, por mim do que por suas próprias fontes”. De fato, o major Antonio Henrique Almeida de Moraes, um dos integrantes da representação nacional, reclamou que “as notícias que recebíamos do Brasil eram muito escassas e demoradas, o que, não raro, dificultava os nossos entendimentos com o comando Aliado no Mediterrâneo”.
Houve equívoco quanto à missão dos militares brasileiros, pois não cumpriam a missão típica dos oficiais de ligação, mas a de observadores. Estavam fora do País desde o ano anterior, antes mesmo da concentração do 1º Escalão da FEB no Rio de Janeiro. Seus passos eram relatados ao escalão superior por Russo que, embora ocupasse alto cargo no Escritório de Ligação do QG Aliado, aparentava preocupar-se em demasia com o controle da informação — talvez por hábito decorrente das suas atribuições como membro do OSS. Há indícios da sua atuação em Recife, sob o disfarce de agente comercial, enquanto corria em Washington a ideia fantasiosa de se criar uma força secreta de “selva”, constituída por “madeireiros americanos” fluentes em português, para assumir o controle do Nordeste do Brasil.
Harold Russo argumentou que a proposta de retorno dos observadores “visava eliminar uma possível fonte de vazamento de informações nos estágios finais do processo de recepção do Regimental Combat Team (Grupo de Combate Regimental — RCT)”. Na ânsia em sondar as atividades dos brasileiros, até mesmo suas correspondências pessoais — já censuradas pelo Ministério da Guerra — viraram objeto de escrutínio pelo militar americano, que denunciou a “frouxidão na observância das medidas de segurança” no Brasil, citando carta escrita pela esposa de um dos oficiais, que trazia informação “relativa ao escalão avançado do general Zenóbio, o efetivo e sua distribuição, a data de partida e o nome de um major”.
Russo forjou tal denúncia, pois a composição do contingente de embarque brasileiro chegou ao conhecimento de minúsculo grupo de oficiais do Estado-Maior febiano apenas em 15 de maio de 1944. Mesmo que houvesse vazamento de informação, é improvável que os observadores a recebessem por correspondência em menos de sete dias, pois as cartas do Brasil demoravam semanas até a entrega aos destinatários em solo africano. Na ocasião (15 de maio), o próprio general Kröner, adido militar dos EUA, afirmou que “seu nome [do navio de transporte], onde se encontra, quando chegará, nada sabemos”. Mascarenhas reclamou com o adido a respeito dessa indefinição ao final de maio. Os brasileiros saberiam da data de partida do escalão precursor somente em junho.
O acadêmico Harold Joseph Russo fora designado para servir como chefe do órgão de ligação com a FEB graças ao seu conhecimento da linguística portuguesa, e não pela habilidade profissional militar. Créditos exagerados aos seus relatórios foram dados no livro de teor contestável, que recebeu louvores mais por trazer a público avaliação derrogatória às glórias da expedição nacional — e, por tabela, ao Exército Brasileiro — do que pela consistência.
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Fontes: Harold J. Russo a Robert Walsh, 22 maio 1944, WO 204/5574, The National Archives (UK), presente no livro Guerreiros da Província.

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