Os 81 anos da Criação da FEB 🐍

O “inimigo” da FEB
Em 9 de agosto de 1943, a portaria ministerial 47-49 traçou as primeiras normas para a organização da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Contudo, foram precisos mais de sete meses para que toda 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE) fosse colocada sob a ação direta e exclusiva do seu comandante, o general de Divisão João Baptista Mascarenhas de Moraes — o que aconteceu apenas na segunda quinzena de março de 1944, por término da concentração do efetivo na Capital Federal.
Quais razões motivaram tamanho atraso, que tanto prejudicou o apresto e o treinamento da expedição nacional, colocando em risco o seu desempenho no campo de batalha? Nosso artigo propõe uma reflexão acerca desse episódio.
O general Pedro Aurélio de Góes Monteiro retomou seu posto na chefia do Estado-Maior do Exército (EME) no início de agosto de 1943. O militar alagoano estava fora de cena desde outubro do ano anterior, mas, como o ministro da Guerra tinha viagem marcada para os EUA, o Exército deveria ficar em mãos confiáveis. O general Eurico Gaspar Dutra solicitou que Góes intercedesse perante Getúlio Vargas, para que o comandante-mor da FEB fosse designado. Em janeiro, Dutra entregara a proposta do Corpo Expedicionário nacional em mãos de Vargas. Desde então, quase sete meses haviam decorrido, mas Getúlio ainda não dera o sinal verde para o início do processo de organização do contingente.
Dutra avisou que já havia se oferecido a Vargas para assumir o cargo, e Góes censurou-lhe a iniciativa. Disse que, por tratar-se de um “cargo de absoluta confiança do Governo, este [Vargas] é que deveria ter ampla liberdade para a escolha do chefe”. Acrescentou que, se o ministro consentisse, ele mesmo iria tratar do caso com o presidente. Dutra concordou e Góes compareceu à residência presidencial na noite do dia seguinte, para alertar Vargas que já se tornava tardia a solução, pois a primeira ação nesses casos [formação de tropa] implicava na escolha do chefe, do qual dependeria o restante.
O Sr. Getúlio, depois de ouvir-me com a fisionomia um tanto brejeira, perguntou-me como é que poderia resolver o problema. Respondi-lhe que não achava conveniente a escolha do general Dutra, que iria fazer falta na frente da administração da guerra. Com um sorriso estranho nos lábios, o Sr. Getúlio Vargas disse-me, então, que, na manhã daquele mesmo dia, já havia acertado com o general Dutra a nomeação deste para o comando em chefe […] O general Dutra, que às vezes é precipitado em suas resoluções, foi ao presidente Getúlio comunicar as combinações entabuladas e ofereceu-se para ser o comandante em chefe da FEB. O que foi aceito. Então, deu ele andamento, embora em câmera lenta, à preparação da tropa expedicionária.
Por sua vez, Getúlio desejava Dutra à frente da Força Expedicionária, pois o general cuiabano — um indivíduo retraído — não demonstrava ter pretensões maiores na política e, mesmo que no futuro tivesse, seria um adversário derrotado com facilidade na disputa eleitoral. O retorno de Góes Monteiro destravou a burocracia que atravancava a gestação da FEB, e as primeiras normas para a organização do contingente expedicionário foram, enfim, publicadas em 9 de agosto. Ao invés do mito difundido pela historiografia simpática ao ditador, emitiu-se a ordem presidencial para a criação da tropa graças à ação pessoal do chefe do EME — supostamente um “inimigo da FEB”.
Jangal estadonovista
A sucessão desses eventos oferece visão clara e rara das relações interpessoais entre Vargas e a cúpula militar durante o Estado Novo. Ao contrário de Dutra, Góes Monteiro tinha intimidade com Getúlio mesmo antes da Revolução que o levou ao poder em 1930. O ministro da Guerra possuía o controle nominal da Força Terrestre, mas a alma do Exército estava nas mãos do chefe do Estado-Maior. Vargas, como de praxe, deixara a situação chegar ao limite para fazer seu lance.
Dutra havia retirado suas reservas e passou a vislumbrar de modo favorável o estreitamento da aliança com o poderoso vizinho do norte, pois o núcleo de um moderno, treinado e equipado Exército daria ao Brasil a hegemonia militar na América do Sul — e o fim das preocupações na sua fronteira meridional. Além disso, o comando do Corpo Expedicionário seria o ponto alto da sua carreira — cujo prestígio o habilitaria a candidatar-se, com sucesso, na próxima eleição presidencial. Segundo Góes: “já se vislumbrava, entre os rumores e as criações da imaginação, que o general que voltasse vitorioso na guerra externa, por menos que fizesse, estaria creditado para tomar conta do poder no Brasil”.
Eis apenas uma das faces do processo de organização do contigente expedicionário, cuja complexidade impossibilita o resumo em simples artigo. Nosso livro Guerreiros da Província trata desse assunto em profundidade, com base em extensa, minuciosa e inédita pesquisa nas biografias dos personagens-chave e na bibliografia de autores consagrados, além do contido em relatórios confidenciais de arquivos nacionais e estrangeiros — alguns inéditos.

O que poderia ter sido feito para agilizar o processo de formação e treinamento da FEB? Como diferenciar os fatos das fábulas que envolvem a organização febiana? São perguntas incômodas de uma questão intrincada e multifacetada. Interrogações que a historiografia evitou ao longo de mais de 80 anos, pois, além da complexidade do tema, implica tanto em críticas a instituições quanto na revisão da memória estabelecida para determinados agentes históricos. Preferiu-se evitar controvérsias.
Múltiplos obstáculos evitaram que essa tarefa fosse levada a cabo: de pruridos institucionais à censura oficial ou corporativa, tanto no meio civil quanto no militar. Poucos se embrenharam no jangal político estadonovista, dispostos a empreender uma análise imparcial dos fatos. Em geral, o comodismo aliou-se a limitações variadas, evitando que o tema fosse abordado de forma honesta e profissional, por meio da desculpa capenga de que ele foi “esgotado” e “ultrapassado” pelos avanços da guerra moderna — não mais do que curiosidades dignas de museu. Cacoetes, virtudes e vícios de uma sociedade fazem parte do seu âmago. Atravessam os séculos. De nada adianta jogá-los debaixo do tapete, pois retornarão para assombrar os responsáveis da vez em momentos críticos.
A organização e o preparo da Força Expedicionária Brasileira é o único exemplo de mobilização plena da Força Terrestre no século XX, cujos ensinamentos podem e devem ser extraídos em favor da segurança nacional. Num presente conturbado, em que a eclosão de uma Terceira Guerra Mundial a cada dia move-se do campo das possibilidades remotas para o das probabilidades reais, a exata compreensão da experiência bélica febiana pode implicar no destino da Nação brasileira. Em última instância, até na sua existência.
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