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O Zé Maria no berço do futebol

Pracinha José Maria da Silva Nicodemos

Pesquisar a respeito da origem dos expedicionários é uma tarefa das mais gratificantes, com surpresas capazes de deixar boquiaberto o mais insensível dos historiadores. Trata-se de um “banho” de brasilidade; um mergulho nas origens do nosso povo, na cultura da nossa Nação.

Um exemplo foi a busca pela ancestralidade do veterano José Maria da Silva Nicodemos: o saudoso “Zé Maria”, que por tantos anos frequentou a sede juiz-forana da Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira. Nossa pesquisa encontrou evidências robustas de um evento desconhecido, capaz de mudar a própria história do esporte mais popular no Brasil: o futebol.

Por volta do final do século XIX, chegou ao Brasil o imigrante italiano José Ângelo Nicodemos, natural da Calábria, acompanhado do irmão Pascoal. Desembarcaram no Rio de Janeiro e se embrenharam no interior de Minas Gerais. José comprou modesto pedaço de terra na zona rural de São João Nepomuceno; Pascoal ficou na área urbana da cidade, na gerência de um pequeno armazém.

Theodora Nicodemos, filha de José, uniu-se ao lavrador José Pereira da Silva — trineto do português Joaquim José da Silva, que aportara naquelas plagas perto do início do século XIX, e adquiriu enorme fazenda denominada Boa Vista, hoje sede do município de Rio Novo. José era bisneto do Guarda-Mor Manoel José da Silva (oficial da Guarda-Real que comandava vinte homens).

Os sobrenomes “Nicodemos”, de origem italiana, e “Silva”, da linhagem portuguesa, uniram-se na certidão do primeiro bebê do casal, nascido em 26 de setembro de 1922: José Maria da Silva Nicodemos — chamado pelos amigos mais chegados de “Pereira”, em alusão ao pai, de ancestrais famosos.

Theodora, sua mãe, formou-se professora na Escola Normal; lecionou primeiro em Araci, em seguida numa escola do Distrito de Taruaçu, na qual o garoto José Maria concluiu o ensino primário. O menino não mais frequentaria os bancos escolares; passou a trabalhar no sítio da avó como candeeiro: o guia do carro de bois.

Dono de memória invejável, sete décadas depois, o ancião lembrou em detalhes os tempos de infância e juventude, em que transportava lenha para a fábrica de tecidos Sarmento, a maior da região: “Voltava com o carro lotado de cana de açúcar, cereais e madeira para o sítio. Fiz o percurso uma, duas, oito, dez vezes sozinho, comandando o carro entre São João Nepomuceno e as terras da minha avó. Eu sabia lidar com os animais e meus tios tinham confiança em mim”.


A vida pacata no interior deixou saudosas recordações: “Quando dava seis horas da tarde e começava a escurecer, acendiam as lamparinas a querosene. Não existia luz elétrica, mas também não se ouvia barulho de rua. A vida era mais silenciosa”. Poucas pessoas tinham automóveis, entre eles, o prefeito e o vigário, que geralmente dirigiam o famoso Ford “bigode”, modelo 1929. “Havia seis carros em São João Nepomuceno, no máximo. Hoje dizem que o Brasil é pobre; pobre era naquele tempo. Quase ninguém tinha rádio, pouca gente tinha poder aquisitivo para comprar um aparelho ou mesmo o jornal”. O primeiro rádio da família de Nicodemos usava a bateria de um automóvel como fonte de alimentação.

A partir de agosto-outubro de 1942, os colegas mais chegados, já reservistas, começaram a receber as correspondências do governo, que ordenavam a apresentação no 12º RI — alguns mostravam-nas com entusiasmo. Omitir-se da convocação para a guerra seria ato imperdoável naquela cidade pequena, capaz de arruinar para sempre a reputação de qualquer rapaz. Zé Maria tomou coragem e disse aos pais:

Não adianta, de qualquer forma eu tenho que adquirir o certificado; quem sabe amanhã eu vou querer sair [procurar emprego] e vão me pedir. Não houve objeção nenhuma, eu me apresentei voluntariamente no Doze [12º RI], e aí eu permaneci.


Um dos seus velhos amigos de infância servia no regimento como datilógrafo na “Casa das Ordens”: o setor encarregado de gerir a burocracia. O aspirante a soldado o procurou. Na ocasião, estava prestes a ter início o campeonato interno de futebol, disputa de grande rivalidade no quartel de uma das cidades pioneiras da prática desse esporte no Brasil. Em 1904, fundou-se a primeira agremiação futebolística de Juiz de Fora, o Athletic Club, apenas dois anos após o Fluminense, o mais antigo clube de futebol carioca.

O datilógrafo de São João Nepomuceno conhecia bem a destreza do amigo com a bola, e decidiu informar o fato ao capitão da Companhia Extra, já que a fama de excelente jogador de futebol servia de ótima referência para o ingresso nas fileiras do Exército. A prática futebolística mostrava-se mais eficaz do que os precários exames sanitários da caserna; afiançava no jovem praticante boa saúde, agilidade, disciplina, fôlego e espírito de equipe — além de coragem e resistência para suportar as botinadas típicas do rude esporte bretão.

No conjunto, simbolizavam atributos desejáveis para o bom exercício da atividade militar. Zé Maria autodefiniu-se: “Não era um craque do futebol, mas chutava com muita força e precisão; era muito ágil, [com] muita força. Não força física, digamos assim, pelo tipo atlético. Meu peso sempre foi 56 [kg], nem pra cima nem pra baixo, mas eu pulava qualquer barranco e corria como um danado”.

Eu cheguei pela manhã à Casa das Ordens, apresentei-me na portaria e, quando encontrei o comandante, que era um capitão, ele já esperava por mim. Já estava todo mundo de olho, inclusive, esperando o tal homem que chutava forte.

As portas do Exército estavam abertas ao “Pereira”. A mutação do paisano em soldado durou tanto quanto uma partida de futebol. Apenas 90 minutos depois de entrar no quartel, Nicodemos (seu nome de guerra) já se encontrava fardado e designado para ocupar uma função burocrática. “Eu cheguei, me apresentei, e logo fui levado pra Companhia Extra, e não ‘jurei Bandeira’ nem nada, já vesti a farda, fiz um exame físico lá. Não tinha nada mesmo, graças a Deus eu não tinha nada mesmo”. Mas o jovem deu azar logo na estreia do campeonato: contundiu-se no início do segundo tempo da primeira partida. “Aí não consegui jogar mais. Naquela época não tinha tratamento para nada, coisa nenhuma”.


Entretanto, o pionerismo de Juiz de Fora na prática do futebol parece ser ainda mais remoto do que se supõe. O historiador Ernesto Giudice Filho encontrou em um livro de atas do Colégio Americano Granbery, atual Colégio Metodista Granbery, a seguinte entrada de 10 de março de 1893, que mistura o português e o inglês:

Inaugurou foot-ball and tennis

Entrada no livro de atas do Colégio Americano Granbery, de 10 de março de 1893 (Fonte: G1).

O evento foi realizado graças à iniciativa do reverendo norte-americano  John McPhearson Lander, primeiro reitor do colégio, que trouxe da Inglaterra uma bola e um livro de regras do novo esporte.

Outra citação, de 24 de junho do mesmo ano, aponta a realização de um Field day com “Foot-ball entre os Gregos e Troianos” — tudo isso dois anos antes de Charles Miller organizar o que é considerado o primeiro jogo no Brasil.


Outra entrada no livro de atas do Colégio Americano Granbery, de 24 de junho de 1893 (Fonte: G1).

De acordo com uma reportagem do G1 (novembro de 2023), a área onde teria sido realizada esta partida histórica estava localizada junto de onde hoje funciona o colégio, no bairro Granbery. Contudo, nossa pesquisa encontrou resultado divergente, que nos levou ao distante bairro Fábrica, onde está uma organização militar do Exército Brasileiro.

Apuramos que, pelo menos desde janeiro de 1893, o Granbery ocupava as instalações do Colégio São Salvador, na antiga Escola Agrícola União e Indústria de Juiz de Fora, futura sede do 12º RI (atual 10º Batalhão de Infantaria Leve de Montanha).

Assim, não é exagero afirmar que “Zé Maria” tenha ido servir no “berço” do futebol brasileiro.

Anúncio do Collegio Americano Granbery no jornal O Pharol, em 25 de janeiro de 1893 (Hemeroteca Digital Brasileira).
Colégio São Salvador. Neste local hoje funciona o 10º Batalhão de Infantaria Leve de Montanha, onde o pracinha boleiro “Zé Maria” serviu (Arquivo Xixa M. Carelli, Blog Maria do Resguardo).
Entrada do 10º Batalhão de Infantaria Leve de Montanha. Foto do Sd Igor Almeida, Seção de Comunicação Social 10º BIL.

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O texto desta postagem foi extraído do livro “Guerreiros da Província: a jornada épica da Força Expedicionária Brasileira“.

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