
Dentre o leque de Armas e Serviços da Força Expedicionária Brasileira (FEB), talvez o menos mencionado seja o das Comunicações — um dos tipos de especialidades que costuma ser lembrado apenas “quando não funciona”. Sequer lhe foi dedicado um símbolo cartográfico durante a campanha febiana.
A Arma de Comunicações foi criada no Exército Brasileiro com a formação da 1ª Companhia de Transmissões (1ª Cia Trans) no Rio de Janeiro. Tinha a missão de substituir o Serviço de Engenharia nessa tarefa — uma das muitas alterações devidas à adoção da doutrina do Exército dos Estados Unidos da América.

Em setembro de 1944, a 1ª Companhia de Transmissões realizou feito tecnológico notável para a época: protagonizou a primeira transmissão radiotelegráfica intercontinental direta da Itália para o Brasil, interligando o QG da FEB com o Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro. A ligação utilizou uma estação-radio SCR-399 montada em viatura, cujos sinais eram captados pela Estação Receptora da Companhia Radio Internacional do Brasil, de lá seguindo para o QG no Ministério da Guerra por linha da CTB (Companhia Telefônica Brasileira).

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Os militares do Serviço de Transmissões partilharam dos perigos e vicissitudes dos seus camaradas da Infantaria. Um episódio notável aconteceu em uma madrugada de outubro de 1944, no Vale do Rio Serchio, durante as operações do Destacamento FEB. O sargento Salvador Moreno, comandante de um grupo de combate da 9ª Cia do 6º RI, descreveu o ocorrido em suas memórias, trecho que fizemos questão de reproduzir no livro “Guerreiros da Província”. Moreno reparou que:
“a posição de nossa Companhia tem mais de um quilômetro de profundidade. Estamos isolados praticamente do restante do Batalhão. Somos um posto avançado ao longo de toda a frente do III Batalhão”. De fato, a 9ª Cia continuava na margem oriental do Serchio, sujeita às infiltrações noturnas do inimigo — com predileção pelo breu da fase de lua nova (que teria o ápice em 17 de outubro).
Na madrugada de 13 para 14, uma patrulha germânica de uns 30 homens infiltrou-se na retaguarda da subunidade. Avançaram de forma sorrateira pelo leito do rio, seco em algumas partes, aproveitando o barulho da correnteza a disfarçar os ruídos. Entraram na residência de um civil, para colher dados a respeito dos pracinhas, e armaram tocaia em torno da casa. Cortaram os circuitos telefônicos, o que exigiu a intervenção do pessoal de Transmissões (Comunicações).
“Nossos telefonistas, coitados, sofrem, porque os bombardeios partem inexoravelmente as linhas. E eles não podem descansar, para que seus camaradas continuem sendo abastecidos, medicados e protegidos. […] Vão espontaneamente, dedicadamente, mesmo que, lá, os esperem as granadas”, escreveu o capitão Newton de Andrade Mello em seu diário.

Os telefonistas que vieram reparar os circuitos caíram prisioneiros na arapuca tedesca — os primeiros cativos do Destacamento FEB, que até aquela ocasião capturara 71 adversários. O mato-grossense Simeão Fernandes não se intimidou; soldado valente, ofereceu tenaz resistência na luta tremenda e desigual. Duelou num violento corpo a corpo com o comandante rival, o que resultou na morte de ambos. Recebeu, postumamente, a Cruz de Combate de 1ª Classe.
Fato típico de um país incapaz de honrar a memória dos seus heróis, o ato do rapaz foi esquecido. Exceto por um artigo romanceado de Paulo Vidal nos anos 1950, reproduzido a seguir, nenhum jornal da época descreveu esse episódio, e muito menos publicou mísera foto de Simeão, jovem com 19 anos incompletos — um dos muito heróis anônimos da FEB.
O GAROTO SIMEÃO
Artigo de Paulo Vidal
Ele era quase um menino. Tinha dezenove anos incompletos quando foi convocado pelo Exército. Engajado na FEB, dela poderia ter saído, mas nela fez questão de ir.
Imberbe ainda, era um prato predileto para os seus companheiros, que dele faziam motivo de suas brincadeiras. Ele não ligava. Compenetrado, era um soldado exemplar. E no campo de batalha somente os excepcionais se destacam. Simeão Fernandes — este é o nome todo — todo — se cobriu de glórias. Foi condecorado duas vezes, recebeu a Cruz de Combate de 2ª e 1ª classes, por bravura incomum.
Um legitimo e autêntico herói — um herói esquecido do Brasil. Simeão pouco tempo ficou na FEB. Morreu logo nas primeiras ações em que tomou parte, na região de Barga. Sua morte, nas circunstâncias em que fielmente iremos descrever, causou admiração aos chefes dos exercitos aliados e um imenso orgulho aos brasileiros, principalmente aos seus companheiros de batalhão, que foram sepultar, com os olhos marejados de lágrimas, o garoto Simeão Fernandes, o esplêndido soldado 1G 295.805, do glorioso 6º Regimento de Infantaria.
O Destacamento FEB, sob o comando do general Zenóbio da Costa, tinha ocupado várias cidades italianas, expulsando e Wehrmacht de suas sólidas e quase intransponíveis posições defensivas. Já com alguma experiência da tática alemã, os chefes brasileiros agiam com cautela. Era comum o inimigo simular uma retirada, para depois, inopinadamente, pegar os brasileiros de surpresa.
Prevendo isso e para evitar qualquer surpresa, os batalhões empregados em combate tinham ordens expressas de Zenóbio para que mantivessem em ordem bom funcionamento das linhas de comunicação telefônica entre as suas subunidades. O “hand talk” — rádio portátil — era ótimo para uma emergência, para transmitir ordens rápidas em plena ação. Mas o telefone de campanha era muito mais seguro, pois a possibilidade de interferência e de captação de mensagens por parte do inimigo era infinitamente menor. Daí a grande importância dos fios telefônicos a cargo da Companhia de Transmissões, e dos próprios elementos dos Regimentos de Infantaria, na frente da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária.

Na noite de 14 de outubro de 1944, Simeão foi enviado, com mais 4 companheiros, para testar uma tinha telefônica em lugar perigoso e sob as vistas dos alemães, na terra de ninguém. Era necessário testar a linha, que se estendia do PC da Cia à um posto de observação avançado. Os pracinhas partem firmes e resolutos para o cumprimento da missão. Acompanham o fio em toda a sua extensão, examinando e substituindo as partes atingidas por bombardeio inimigo. Estavam, os cinco, entregues a essa tarefa quando foram colhidos, de surpresa, por uma patrulha alemã composta de 20 “super-homens”.
A luta era desigual. Cinco contra vinte. Mas eles não se entregaram, oferecendo tenaz resistência ao inimigo, a cujo fogo respondem, disparando todas as suas armas, sem ceder um milímetro de terreno. Colados ao terreno, não demonstram o menor esmorecimento. Mas os alemães, em muito maior número, aos poucos vão se aproximando e estabelecendo o cerco fatal.
Os brasileiros vão ficando desesperados e resolvem mandar Simeão à retaguarda, para pedir reforços, já pedidos pelo telefone, mas que tardavam. Simeão recusa-se — e afirma aos seus companheiros admirados de sua bravura:
— “Não sou criança. Vamos acabar com isso, eu sou um soldado do Brasil”.
Era essa a primeira vez que se insurgia contra os seus companheiros.
Calmo, firme, sem vacilações, atira sem cessar, consumindo pentes e mais pentes de munição. Seu “Springfield” começa a aquecer. A pólvora suja seu rosto imberbe. E Simeão, sem deixar de atirar, concita os seus companheiros à resistência a qualquer preço.
Percebendo que os alemães não tiravam os olhos de um suboficial, que parecia ser o comandante da patrulha alemã, Simeão toma uma resolução súbita. Pede aos companheiros que lhe deem cobertura e avança, de rastro, em direção ao comandante alemão.
Esmorece o fogo de ambos os lados. Atônitos, alemães e brasileiros acompanham ansiosos a progressão de Simeão em direção ao comandante inimigo. À curta distância do alemão, Simeão para. Novamente aferra-se ao terreno e despeja uma carga de seu fuzil em direção ao alemão, que imediatamente responde com uma rajada de sua submetralhadora. Nenhum dos dois é atingido. Aproximam-se mais, agora o comandante alemão aceita o duelo.
A luta praticamente se resume na ação desenvolvida por aqueles dois inimigos — um quase uma criança, o outro talvez pai de várias crianças. Pressentem os soldados que o duelo teria de acabar num corpo a corpo, pois os dois se aproximam cada vez mais. Todos deixaram de atirar e olham, surpresos, o pracinha brasileiro e o suboficial alemão.
Nesse momento chegam a reforços brasileiros. Socorrem os nossos feridos e afugentam os alemães. Todos correm em direção ao local onde se encontra Simeão, mas nada podem fazer. Ambos, o brasileiro e o alemão estão mortos, crivados de balas.
Os pracinhas abaixam-se e com todo o respeito levantam o cadáver quente do pracinha brasileiro. Sua fisionomia estava tranquila, sua boca cerrada demonstrava firme determinação. Os soldados não conseguem conter as suas lágrimas. O garoto Simeão estava inerte, mas parecia sorrir para seus companheiros. Um sorriso que era o último adeus do garoto ao batalhão.
Constam do Boletim especial do Exército as seguintes anotações sobre Simeão:
Soldado Simeão Fernandes 1G 295805 — 6º RI — Estado de Mato Grosso
“A 14 de outubro de 1944, em São Bernardino, quando procurava testar com mais 4 companheiros, uma linha telefônica, foi colhido de surpresa por ema patrulha reforçada de 20 alemães, oferecendo-lhes tenaz resistência.
Enquanto aguardavam o reforço pedido, a luta prosseguia tremenda e desigual. O soldado Simeão lança-se num corpo a corpo contra o comandante da Patrulha inimiga, o que resultou na morte de ambos. Demonstrou, nessa ação, impavidez, coragem, iniciativa, bravura e sangue frio”.
Foi condecorado “post-mortem” com a medalha de campanha, medalha de Sangue do Brasil, Cruz de Combate de 2ª Classe e Cruz do Combate de 1ª Classe. Simeão nasceu em Poro Murtinho e era filho de Baldomero Fernandes e dona Dolores Benitez. Foi sepultado na quadra C, fileira 7, sepultura nº 81 do cemitério de Pistoia.
O artigo de Paulo Vidal recebeu resposta do prefeito de Porto Murtinho:
É com com viva satisfação que acuso o recebimento do recorte de jornal narrando a bravura de Simeão Fernandes, nos campos da Europa, na última grande guerra mundial.
Aquele artigo jornalístico que o ilustre conterrâneo nos enviou– como bom matogrossense —, nós o consideramos como uma homenagem à nossa própria terra. A genitora de Simeão percebe uma pensão mensal, por esta Prefeitura, pois a mesma — mãe de um herói — acha-se no desamparo. na miséria, quando a velhice lhe bateu às portas.
Grato pela remessa daquele recorto, apresento-lhe os meus cumprimentos.
Cordiais saudações,
Octávio de Oliveira
Prefeito municipal de Porto Murtinho.

Para ilustrar este post, exibimos as fotografias do pracinha José Moraes, gentilmente enviadas por seu filho Eduardo de Moraes.
Por ocasião do alistamento para guerra, José Moraes ingressou voluntariamente no 4º Batalhão de Engenharia de Combate (Itajubá), com propósito de conhecer outro país e de estar em um ambiente com americanos, a fim de poder treinar o seu inglês. Ele havia sido dispensado do serviço militar aos 18 anos, e estava se preparando para cursar Engenharia na Escola Federal de Engenharia de Itajubá (EFEI).
Ao desembarcar na Itália, devido ao seu conhecimento da língua inglesa, foi destacado para servir numa equipe de Transmissões, onde atuou na radiotelefonia, interceptação de mensagens, decodificação, e na comunicação entre o comando americano e o comando da FEB.







Houve um episódio curioso ocorrido em seu retorno à terra natal. Por conta de um homônimo que veio a falecer, já terminando a guerra, a família de José Moraes erroneamente recebeu o comunicado da sua morte na Itália, via Ministério da Guerra.
Quando a FEB retornou ao Brasil, a partir de julho de 1945, os seus familiares — muito religiosos — já estavam conformados com a perda do ente querido. Daí foram tomados pelo espanto na sua chegada ao lar, de surpresa, na minúscula Brazópolis – MG. Ao invés da calorosa recepção, ficaram todos assustados, brancos de medo, pois julgavam estar diante de um fantasma.
Moraes ingressou na EFEI e se formou na turma de 1951; trabalhou por 30 anos na Usina Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. Faleceu aos 83 anos, em fevereiro de 2004.

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