Foto da patrulha do 2º tenente Raimundo Cavalcanti Silva (encabeçando a tropa), colorizada por nosso site. Ao fundo, a torre de Rocca Corneta, provavelmente um posto medieval de observação e alerta (Arquivo Nacional).
Por que o soldado brasileiro é celebrado na Itália, mesmo após 80 anos?
🇧🇷❤️🇮🇹
Durante a Segunda Guerra Mundial, centenas de cidades italianas foram libertadas pelas tropas Aliadas — desde grandes metrópoles até pequenas vilas. Mas há algo de especial na forma com que o povo da região da Emilia-Romagna, especialmente na região de Montese e Gaggio Montano, rememora as ações dos combatentes da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Por que o soldado brasileiro é celebrado na Itália, mesmo após 80 anos? A resposta está na memória viva de um povo grato e nas ações inesquecíveis de nossos pracinhas.
Os americanos diziam: primeiro temos de ganhar a guerra, para depois cuidarmos do povo. Já nós, brasileiros, não fizemos assim; ajudávamos como podíamos aquela gente necessitada, que precisava de tudo.
Essa compaixão espontânea conquistou corações. Não era apenas mais um exército estrangeiro que chegava, mas gente solidária e humana.
Outro exemplo comovente é o do 1º Sargento Ivaldo Ribeiro Dantas, da 8ª Companhia do III Batalhão do 11º RI. Herói da Batalha de Montese, foi condecorado com a Bronze Star por sua bravura no ataque a Serreto. Consta nas suas alterações:
Foi louvado nominalmente pelo Cmt do Btl nos seguintes termos: no ataque a Serreto-Montese, destacou-se mais uma vez pela coragem, grande sangue-frio no mais duro da ação. Pela sua firmeza de comando e apurada noção do cumprimento do dever, por 3 vezes lançou-se arrojadamente sobre casamatas inimigas, destruindo e aprisionando as guarnições das mesmas. Pela ação ousada da sua tropa, puderam os demais elementos da companhia atingir o objetivo determinado. Mais uma vez, no dia quinze, salientou-se no assalto a uma casamata da cota 927 e na qual causou fortes baixas ao inimigo. É um elemento que sempre impôs a admiração dos seus chefes, pela capacidade de comando, grande coragem pessoal e admirável sangue-frio no mais duro da ação.
Proposta de concessão da Bronze Star ao 1º Sgt Ivaldo.
Mas os feitos de Ivaldo não se restringiram ao campo de batalha, conforme relembra o seu neto, Sidney Dantas:
Ele dizia à minha avó que pouco sentiu o sabor dos doces e outros alimentos das rações americanas que os soldados brasileiros recebiam. Distribuíam quase tudo às crianças que encontrava pelo caminho. A compaixão e a solidariedade dos brasileiros com as vítimas da guerra, em especial com as crianças italianas, são até hoje lembradas com gratidão pelos italianos nos caminhos que a FEB percorreu.
O 1º Sgt Ivaldo Ribeiro Dantas (ao centro da foto) entre crianças italianas.
O vínculo entre brasileiros e italianos ia além da guerra. Também no documentário O “Lapa Azul“, o italiano Giovanni Sulla destacou as afinidades de língua, fé e cultura — laços que criaram uma ponte de latinidade e empatia duradoura entre os dois povos.
Fotografia da 3ª Cia do 6º RI, em Pontemazzori (set./out. de 1944), inclusa no livro “Guerreiros da Província“.
O veterano José Gonçalves, do 6º RI, reforça isso em seu livro Irmãos de Armas, dedicado aos subordinados do pelotão que comandou:
Aos meus soldados, pessoas de origem humilde que lutaram com bravura e honraram o Exército Brasileiro. […] com seu jeito simples e humano de ser, conquistou a amizade e a admiração da população dos lugares onde o Exército combateu”. Constatou em suas visitas à Itália, no pós-guerra, que “passados 60 anos […] qualquer brasileiro que visitar essa região será recebido com enorme carinho pelas pessoas que viveram aqueles momentos e pelos seus descendentes”.
Não há exagero nas palavras do veterano paulista. Qualquer turista nacional comprova a permanente empatia que os italianos dedicam aos nossos patrícios. À habitual cordialidade dos seus habitantes, somou-se a identificação com o pracinha, oriunda do ciclo migratório. Proveniente de São Paulo (ou San Paolo), o 6º RI trouxe rapazes de traços finos, descendentes do “Antonio” e da “Giovanna” da vila vizinha, que emigraram para o Brasil por volta do final do século XIX. Eram como filhos retornando ao antigo lar. E, como tal, foram acolhidos.
Esse espírito ainda pulsa. O pesquisador José Eduardo do AmaralRosa compartilhou um encontro emocionante na vila de Pianello Sotto, próxima a Campanile di Rocca Corneta — que no Brasil teimam em confundir com o Monte Castello:
Ao entrar no terreno da casa, percebo um senhor cortando o mato alto de um pasto. Ao me aproximar, ele vem ao meu encontro com o semblante desconfiado. Ao me apresentar, dizendo ser brasileiro, ele exclama com um sorriso:
— Brasiliane!!! Che bellissimo!!! Benvenuto!
Larga o cortador e vem nos receber (eu e minha esposa Silvia). Comento sobre a referida foto e peço autorização para tirar algumas fotos, o qual me autoriza de imediato. Muito atencioso e gentil, vai até sua casa e chama sua esposa para nos apresentar. Volta com uma garrafa de vinho (delicioso) e começa a contar sobre as agruras sofridas pelos seus pais e avós, na época da ocupação alemã.
Mostra numa elevação próxima uma das casas onde os alemães haviam executado os pais, na frente das crianças de 8 e 12 anos, por esconderem alimentos [Na verdade, fora uma vingança pelo ataque de guerrilheiros contra tropas alemãs]. Se emociona quando fala da chegada dos brasileiros, com muitos chocolates e “scatolletas”…
Brindamos e, emocionado, me abraça várias vezes, agradecendo aos bravos soldados brasileiros. Pude ter uma ideia de como os nossos pracinhas eram recebidos ao chegarem nos lugarejos. Foi realmente tocante ver a emoção sincera nos olhos do senhor Fiorenzo Bettocchi e sua esposa.
Que orgulho de ser brasileiro, pensei… Tive a certeza que aqueles jovens, fizeram bonito, na guerra e no coração da população italiana… Foi uma viagem maravilhosa!!!
A jornada da FEB é um dos capítulos mais nobres da História do Brasil.
Não apenas por vitórias militares, mas pela humanidade com que nossos soldados enfrentaram o horror da guerra. Levaram fuzis, sim — mas também pão, chocolate, scatolettas (latas contendo alimentos), empatia e dignidade.
Eles foram heróis no campo de batalha — e protetores das almas feridas. Foram soldados — e irmãos. Foram libertadores — e amigos.
É por isso que, mesmo após 80 anos, os italianos ainda celebram os nossos pracinhas. E é por isso que nunca devemos esquecê-los.
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