“O papel aceita tudo”

Avaliar a campanha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial impõe uma tarefa arriscada e delicada sob múltiplos aspectos. As reações às críticas e elogios variam amplamente, dependendo do contexto em que são feitos. Certa vez, durante um seminário sobre a FEB, houve um momento de grande emoção: um veterano chorou convulsivamente, enquanto sua filha protestava indignada, ao ouvir um jovem acadêmico criticar as relações pessoais entre oficiais e praças durante o conflito.
No meio militar, há quem veja de forma equivocada o livro Barbudos, sujos e fatigados, de Cesar Campiani Maximiano, considerado o melhor volume sobre o tema publicado neste século. O título, que reflete o cotidiano dos soldados brasileiros na linha de frente entre 1944 e 1945, é por vezes mal interpretado, ignorando-se o que se revela na conversa com qualquer expedicionário. Infelizmente, os detalhes da campanha não constam do currículo das escolas militares, mesmo nas de formação e aperfeiçoamento de oficiais e sargentos. Em regra, nos quartéis, a história da FEB é abordada de maneira superficial, limitada à leitura das ordens do dia em datas comemorativas.
A situação mostra-se ainda mais desafiadora no meio acadêmico e escolar. Exceto por alguns historiadores dedicados, o estudo da FEB foi negligenciado, substituído por temas identitários de raça e gênero, muitas vezes atrelados a interesses político-partidários. Enaltecer a atuação dos brasileiros em combate é, para alguns, um elogio indireto às Forças Armadas, algo que preferem evitar. Tal postura resultou na propagação de mitos e avaliações negativas, como a absurda ideia de que a expedição brasileira não passou de um “banho de sol” em Fernando de Noronha, em vez de participar de combates na Europa. A sandice ultrapassa o limite do escárnio.
As avaliações negativas frequentemente ignoram a necessária consulta à vasta bibliografia febiana, preferindo tomar por base o polêmico livro de um jornalista nacional dos anos 1980. Nesse compêndio, trechos mordazes de relatórios do Destacamento de Ligação Brasileiro (Brazilian Liaison Detachment – BLD) foram tomados como verdades incontestáveis, sem o devido escrutínio, apenas por estarem alinhados com certos modelos de pensamento. Eis um exemplo típico do servilismo intelectual, que recebe de braços abertos qualquer opinião estrangeira. Não raro, exibem como pretenso carimbo de credibilidade argumentos do tipo: “Deu no The New York Times”.
Recentemente, o interesse pela participação brasileira na guerra ressurgiu com o enfoque interdisciplinar na História. No entanto, apesar de gerar excelentes trabalhos, alguns focam em narrativas superficiais ou incorretas, como a ideia de que os soldados foram “recrutados à base do cabresto” ou “trocados pela CSN”. A literatura rancorosa de alguns veteranos alimentou essa visão distorcida da FEB, apresentada ao público como um amontoado de analfabetos, desdentados, incompetentes, miseráveis, raquíticos, sifilíticos e vadios em geral.
Quais são, de fato, as bases para as críticas quanto ao “alto número” de deserções, casos de indisciplina e de doenças na campanha febiana, tão comuns nos trabalhos acadêmicos?
Fontes Recomendadas
Para responder a essas perguntas com dados precisos, empreendemos um minucioso e inédito estudo nas fontes primárias da expedição nacional, guardadas no Arquivo Histórico do Exército (AHEx). Além delas, buscamos dados em publicações confiáveis, como A Guerra que não Acabou, de Francisco César Alves Ferraz; O Brasil na II Grande Guerra, de Manoel Thomaz Castello Branco; O Posto Avançado de Neuropsiquiatria da FEB, de Mirandolino Caldas; Notas de um Expedicionário Médico, de Alípio Corrêa Netto e Seleção Médica do Pessoal da FEB, de Carlos Paiva Gonçalves.
Nos Estados Unidos, buscamos nos Arquivos Nacionais (NARA) os documentos administrativos das forças americanas no Teatro de Operações do Norte da África – NATOUSA (depois MTOUSA), acerca da disciplina e do estado sanitário das tropas ianques. Além disso, encontramos farto material na montanha de publicações do U.S. Army Center of Military History: os Green Books (Livros Verdes). Um deles traz a narrativa de J. W. McElroy, oficial-executivo do USS General W. A. Mann, que transportou o 1º Escalão da FEB para a Itália (provavelmente, o militar à direita na foto que ilustra o artigo). McElroy gerenciou o transporte de contingentes de várias nacionalidades, e sua avaliação quanto às tropas nacionais levadas pelo Mann possui alta relevância.
Na prática, o pesquisador minucioso e atento identifica diferenças notáveis de enfoque conforme a origem da fonte consultada (US Navy, US Army e BLD, entre tantos). De forma compreensível, o teor documental varia de acordo com a capacidade e experiência da fonte produtora, bem como do maior ou menor grau de amizade, interação ou litígio que os estrangeiros tiveram com o efetivo nacional. No final das contas, a diversidade de perspectivas oferecidas confirma um velho e popular ditado na caserna, dedicado ao teor dos relatórios e avaliações das atividades militares: “O papel aceita tudo”.


Compartilhamos o resultado de quase 20 anos de pesquisa sobre a Força Expedicionária Brasileira em nosso livro Guerreiros da Província. A obra oferece uma visão abrangente e detalhada da contribuição dos brasileiros na Segunda Guerra Mundial, desmontando mitos e apresentando uma análise justa e fundamentada dessa histórica campanha militar.


Deixar mensagem para Erland Mota Cancelar resposta