De toda a historiografia da Força Expedicionária Brasileira, o livro escrito por um oficial de carreira que mais gerou controvérsias foi, sem dúvida alguma, A Verdade Sobre a FEB (1968), do Marechal Floriano de Lima Brayner.
Recheada de comentários e episódios depreciativos envolvendo a a figura do comandante da FEB, a obra causou tamanha repercussão negativa que levou o autor a tentar se redimir nos livros seguintes. Em Luzes Sobre Memórias (1973) Brayner afirmou: “Mascarenhas foi, sem dúvida, um grande chefe dotado das mais altas virtudes”[1]. Em Recordando os Bravos (1977)[2], ele fez questão de novamente inserir a menção elogiosa feita por Mascarenhas à sua pessoa, já destacada nas primeiras páginas de A Verdade Sobre a FEB.
Todavia, os efeitos do primeiro livro de Brayner repercutem até hoje entre historiadores e pesquisadores. O pouco destaque dado ao seu testemunho é interpretado como uma espécie de censura institucional, que teria resultado numa suposta “higienização” da memória da FEB. Até que ponto é válida tal assertiva?

Julgar a validade das críticas de Brayner é uma tarefa das mais intrincadas e trabalhosas, pois exige do historiador um amplo conhecimento das operações conduzidas pela FEB, bem como da extensa literatura escrita por seus protagonistas. A Verdade Sobre a FEB traz o valioso testemunho do seu Chefe do Estado-Maior, oferecendo ao leitor um quadro único dos percalços enfrentados pelo comando da Divisão brasileira; porém, o valor da obra é nublado por dois traços peculiares do autor: a amargura e o ressentimento.
Brayner jamais perdoou o general Mascarenhas de Moraes por ter dado ouvidos às opiniões do Tenente-Coronel Castello Branco, Chefe da 3ª Seção, em detrimento às suas. A ferida maior no ego do marechal aconteceu no retorno ao Brasil, por ocasião da confecção do relatório final da campanha — segundo Brayner uma atribuição funcional sua — por alguns oficiais que “sequer possuíam o curso de Estado-Maior”.
O relato de Brayner sobre os conflitos pessoais ocorridos na FEB repercutem com maior vigor justamente naqueles que desconhecem o funcionamento de um Estado-Maior e a sua usual “fogueira de vaidades”. Em essência, o relacionamento interpessoal entre os militares de um Estado-Maior não difere muito do encontrado nos civis de uma grande empresa, cujos diretores se esforçam em obter a simpatia do presidente, desejando que suas opiniões sejam escolhidas pelo chefe em situações de conflito junto aos demais integrantes da equipe.
Se os atritos no trabalho de um Estado-Maior acontecem com frequência até mesmo em exercícios rotineiros em tempo de paz, que dirá no calor do combate, quando as decisões tomadas influenciam o destino de milhares de homens. Além disso, tais atritos costumam ser potencializados conforme aumenta o posto dos militares envolvidos — e não são exclusividade deste ou daquele Exército. Assim, a narrativa de Brayner acerca das questões pessoais mencionadas em seu livro, embora sejam muito interessantes, não trazem grandes surpresas para os historiadores militares — exceção feita aos neófitos.
A história mostra que o general Mascarenhas agiu corretamente quando deu ouvidos ao assessoramento de Castello Branco, no sentido de modificar seu estilo de comando e de reforçar o treinamento da tropa — sabidamente pouco e mal instruída no Brasil —, atendendo as sugestões do comando norte-americano. Muito do sucesso da FEB, a partir de fevereiro de 1945, deveu-se a essa nova postura.
Foi outra decisão sábia a designação de uma equipe de dois majores e três capitães, de fora do EM, para elaborar um relatório final da campanha que venceu o teste do tempo. Decorridos mais de 70 anos, o documento continua sólido, equilibrado, e com poucas ressalvas no seu conteúdo. Embora seja usual a produção de tal documento pelo EM, antes de tudo ele é uma responsabilidade do Comandante. Cabe a ele designar o(s) autor(es) do trabalho.

O livro A FEB pelo seu Comandante, de autoria do General Mascarenhas de Moraes, costuma ser criticado por assemelhar-se mais um relatório do que um livro, certamente por ter utilizado o relatório final da campanha como base narrativa. A sobriedade do texto — uma característica do autor — passa longe das intrigas pessoais, pois trata-se de uma obra de alto nível sobre uma campanha militar. Mascarenhas foi um general vitorioso no campo de natalha, e não um romancista.
Semelhante avaliação positiva não cabe ao livro A Verdade sobre a FEB, pois no testemunho de Brayner percebe-se uma gritante falta de iniciativa e autoridade em apaziguar os ânimos exaltados dos oficiais do seu Estado-Maior. Mesmo tendo sido escrita mais de vinte anos após o término da guerra, A Verdade sobre a FEB mostrou uma lamentável falta de compreensão de Lima Brayner acerca das operações militares desenvolvidas pelos brasileiros na Itália, talvez potencializada por um antiamericanismo crônico que permeia a narrativa.

No presente, apesar de todas as ressalvas, a obra de Brayner costuma cair nas graças dos interessados em escrever a “verdadeira história da FEB”, pois, segundo eles, ela teria sido “higienizada” pela instituição militar. Tal concepção provém do espírito revisionista que acometeu a historiografia brasileira a partir dos anos 1980, empreendendo um esforço continuado em tentar reescrever a história militar brasileira sob a ótica da luta de classes.
Ao contrario do que afirmam os revisionistas, jamais houve qualquer iniciativa do Exército em moldar a história da FEB, simplesmente porque a Força Terrestre nunca se interessou em produzir uma versão oficial da campanha. Exceção feita ao conteúdo resumido da FEB na História do Exército Brasileiro (1972), a quase totalidade da bibliografa relativa ao tema foi escrita por seus protagonistas e historiadores civis e militares. Na prática, a tal “higienização” pertence ao universo imaginário e ideologizado dos revisionistas.
Obviamente, qualquer narrativa histórica pode — e deve — ser revista, melhorada e ampliada. Um exemplo é o livro Soldados da Pátria – História do Exército Brasileiro 1889-1937 (2004), de Frank D. McCann: uma monumental análise do papel do Exército Brasileiro da Proclamação da República ao Estado Novo. Contudo, a doutrinação ideológica no falido sistema educacional brasileiro cobra o seu preço. A distância que separa um livro de McCann das canhestras obras revisionistas nacionais é comparável a que separa uma partitura de Bach de um funk do MC Guimê no universo musical.
Mascarenhas foi elegante e cortês a ponto de suprimir de suas memórias as falhas e omissões de terceiros — Brayner inclusive —, recomendando o coronel para a promoção ao generalato diretamente ao Ministro da Guerra. Porém, sua generosidade foi respondida com o ressentimento e a deslealdade. A Verdade sobre a FEB apareceu nas prateleiras das livrarias apenas quando o velho comandante já havia falecido e não podia mais se defender.
Lima Brayner jamais reconheceu a magnanimidade de Mascarenhas. Por sua vez, os febianos também não perdoaram a traição ao seu comandante, e Brayner foi discriminado. Embora ocupasse o mais alto posto da hierarquia militar, ele sequer comparecia às reuniões periódicas dos veteranos. [3] Talvez ele seja a vítima mais emblemática da “fogueira das vaidades” na história moderna do Exército Brasileiro.
[1] Luzes sobre Memórias, p.16.
[2] Brayner ainda escreveu mais um pequeno livro: Luzes no Crepúsculo (1978), sua obra derradeira.
[3] Diálogos com Cordeiro de Farias, p.282.
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Excelente livro do Marechal Brayner. Relata todos os problemas enfrentados pelos Soldados desde a convocação, o desleixo como foram tratados pelo Governo e até comando. Os quinta-colunas, os canalhas da grande imprensa.
Humilhação mesmo é o livro de Willian Waack “as duas faces da glória”, onde relata episódio de corrupção, roubo no fornecimento de refeições para os Pracinhas.
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