A forte religiosidade é uma característica presente no soldado brasileiro desde os mais antigos registros de batalhas, quando imagens de santos eram levadas à frente das tropas contra o inimigo. Esta também foi uma particularidade dos homens do III Batalhão do 11º Regimento de Infantaria — O “Lapa Azul”.
Antecedentes
Traço característico do nosso povo, a fé em Deus permeia as tradições do Exército Brasileiro. O Hino à Nossa Senhora da Conceição, padroeira do Exército Imperial, acompanhou nossos soldados desde o período colonial até o fim do Império, sendo também conhecida como a Canção do Soldado.
O General Raul Silveira de Mello em “O Terço dos Soldados ou dos Militares” afirmou que “antes mesmo do advento do Hino Nacional, o Hino à Nossa Senhora da Conceição era a balada dos nossos avoengos, a nossa canção de guerra”. Esta canção era entoada por todos os soldados do Exército, nos quartéis, após a revista do recolher.
Conta o General Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira, em seu livro Reminiscências da Guerra do Paraguai, que na vigília do dia 23 de maio de 1866, antes da histórica batalha de Tuiuti, ao toque de recolher, às oito horas da noite, todos os corpos formaram. Depois da chamada; os sargentos puxaram as companhias para a frente da bandeira, e rezou-se o terço. Alguns praças, os melhores cantores, entoaram com voz vibrante, sonora e cheia de sentimento, a velha canção do soldado brasileiro: Oh! Virgem da Conceição.
As músicas de quarenta batalhões acompanhavam, expressivas, aquela grande prece ao luar, rezada tão longe dos lares.[i]
“Oh Virgem da Conceição, Maria Imaculada, vós sois a advogada dos pecadores, e a todos encheis de graça com vossa feliz grandeza. Vós sois dos céus, princesa, e do Espírito Santo, Esposa. Santa Maria, mãe de Deus, rogai a Jesus, rogai por nós. Tende misericórdia, Senhora. Tende misericórdia de nós. Maria mãe de graça, mãe de misericórdia, livrai-nos do inimigo. Recebei-nos na hora de nossa morte. Amém”
Tocava-se depois: ajoelhar corpos. Todos aqueles homens simples, rudes e cheios de fé, que iam bater-se como leões, no dia seguinte, puseram-se de joelhos, e com as mãos musculosas, apertando os largos peitos valorosos, entoaram, cheios de contrição e de fé, o “Senhor Deus, misericórdia, Senhor Deus pequei, Senhor misericórdia. Senhor Deus, por nossa Mãe Maria Santíssima, misericórdia”. Logo depois começavam a rezar o terço.[ii]
“Bandeiras se batiam até o chão”- Era notório o espírito religioso de que estavam imbuídos os brasileiros que participaram na Guerra do Paraguai, além da bravura militar que caracterizou os combatentes. Neste sentido, relata-nos o já citado general Dionísio Cerqueira as Missas e cerimônias religiosas realizadas nos acampamentos nacionais dos Voluntários da Pátria:
No alto da coxilha do Potreiro Pires, construiu-se, por ordem superior, uma capelinha coberta de colmo e paredes de taipa de sebe. Todos os domingos ia à Missa a divisão inteira. Era digno de ver o grandioso espetáculo daquela infantaria, formada em colunas contíguas, ajoelhar no campo, de cabeça descoberta, as armas em adoração e batendo no peito, quando o sacerdote levantava a Hóstia e todas as cornetas tocavam marcha batida e todas as músicas do Hino Nacional e todas as bandeiras se batiam até o chão. A ordem da divisão era para a Missa às nove horas. As brigadas formavam às oito, os batalhões às sete e as companhias às seis ou antes. Para aquela soldadesca não deixava de ser fatigante essa formatura, a pé firme, tanto tempo. Entretanto, iam a ela satisfeitos.[iii]

A Religiosidade na FEB
A queda da Monarquia e a ascensão dos ideais positivistas na República suprimiu os capelães dos quadros do Exército. Contudo, a participação brasileira na II Guerra Mundial obrigou o governo a voltar atrás, convocando 25 capelães militares e três pastores evangélicos para acompanharem a Força Expedicionária Brasileira. Como na Campanha do Paraguai, pequenas capelas foram erigidas por nossos soldados em diversos locais. Um deles, em Staffoli, foi redescoberto e recuperado há pouco tempo.

Há um belo trabalho acadêmico que aborda este tema — embora não seja o seu foco principal — da doutoranda Adriane Piovezan. Morte no Mediterrâneo: O Pelotão de Sepultamento da Força Expedicionária Brasileira. Fruto de uma pesquisa detalhada no Arquivo Histórico do Exército, a autora elaborou uma tabela com os objetos encontrados nos cadáveres dos brasileiros. Nos relatórios do Pelotão de Sepultamento há crucifixos, estampas e medalhas de santos, orações, quadros e imagens religiosos, rosários e até um Novo Testamento inteiro.
Objeto | Ocorrências mais frequentes |
Chapa de identificação | 333 |
Objetos diversos | 187 |
Nada | 175 |
Dinheiro | 144 |
Fotografias | 116 |
Medalhas religiosas | 84 |
Correspondência | 59 |
Carteira | 51 |
Estampas de Santos | 47 |
Cartão de Identificação | 43 |
Crucifixos | 34 |
Orações | 32 |
Quadros Religiosos | 31 |
Anel | 30 |
Manual de Orações | 27 |
Relógio | 27 |
Recibo Banco do Brasil | 24 |
Rosários | 23 |
Corrente | 21 |
Registro de Vacina | 20 |
Caneta | 19 |
Canivete | 15 |
Imagens Religiosas | 11 |
Telegrama | 10 |
Relíquias Religiosas | 9 |
“Chegamos a 32,17% de soldados mortos que levavam consigo algum objeto de cunho religioso no momento de sua morte. Em praticamente um terço dos cadáveres foram encontrados artefatos ou impressos relacionados a diferentes devoções, praticamente todos de origem cristã”, afirmou a doutoranda.
Embora este seja um dado altamente relevante para a avaliação do grau de religiosidade — um sentimento abstrato — na tropa, por si só a relação de objetos não nos permite sabê-lo com exatidão, visto que o porte de símbolos religiosos não representa, necessariamente, a presença ou não da fé no falecido. Além disso, era comum o saque dos cadáveres por civis ou militares amigos ou inimigos, que lhes furtavam os pertences — até mesmo os calçados. Em um dos seus livros de memórias, o Coronel Brayner, Chefe do Estado-Maior da FEB, relata um episódio em que a plaqueta de identificação de um pracinha foi furtada, deixando-se em seu lugar o nome do militar escrito num pedaço de papel no interior de uma garrafa. Isso para não mencionar o esfacelamento das vítimas ao pisarem numa mina ou quando atingidos pelo impacto direto do fogo de artilharia, que costumava pulverizar tudo o que não fosse constituído de metal.
Bem melhores que os frios dados estatísticos, referências confiáveis sobre o grau de religiosidade da tropa podem ser buscadas não só nos relatos dos capelães militares, mas nos depoimentos dos veteranos da FEB. O Major Ivan Esteves Alves foi o Auxiliar de Informações do “Lapa Azul” na Força Expedicionária Brasileira, como 2º Sargento. Ivan lembra que “naquela época era todo o mundo que rezava”.


Em suas memórias, o Tenente Cássio Abranches Viotti conta a seguinte passagem:
Mal desembarcado o 2º Escalão, eram cerca de 10.000 homens, foi realizada em Pisa uma procissão belíssima. Os soldados transportavam uma imagem de Nossa de Senhora da Aparecida, cheios de unção, cantando cânticos aprendidos na infância em suas paróquias do interior. Os italianos assistiram, extasiados, àquele desfile triunfal de soldados desarmados, cujo troféu era a imagem daquela Virgem Negra do Brasil. Nunca, jamais, a península italiana, há milênios invadida por tropa africanas, bárbaras, napoleônicas, germânicas, assistira a um desfile como aquele, em que oficiais e soldados, irmanados pela mesma fé católica, davam um exemplo magnífico de religiosidade.[iv]

Certas conclusões errôneas podem advir do estudo deste tema. Por vezes, alguns estudiosos estabelecem uma relação direta entre a religiosidade e o grau hierárquico / nível intelectual do militar. Assim, quanto menor a patente e o grau de instrução, maior seria o grau de religiosidade. Trata-se de um erro crasso. Na Itália, ninguém menos do que o Comandante da FEB, o General Mascarenhas de Morais, recorreu ao tenente Capelão Militar:
— Capelão, antes de ver no senhor o tenente, vejo o padre. Sou um homem de fé. Sou católico, e busco na minha religião a força que preciso para bem cumprir os meus deveres de cristão e de soldado. Como soldado, aprouve a providência de colocar-me à frente da FEB, como seu comandante. Deus não me tem faltado com sua ajuda. Diariamente, peço-lhe a serenidade necessária para suportar as críticas e as incompreensões a que não está imune um comandante. Sempre pautei meus atos pelos princípios da minha religião. Na Eucaristia, busco as energias para transpor os obstáculos e vencer as dificuldades inerentes à minha missão. Contudo, em meio a todas essas dificuldades, próprias de um comando, eu confio em mim, porque confio em Deus, Capelão. E assim, será até sempre.[1]
Conclusão
A religiosidade dos homens do “Lapa Azul” é uma característica do soldado brasileiro presente nos mais remotos registros da nossa História Militar. Dos Voluntários da Pátria no Chaco paraguaio até o pracinha enregelado nos Apeninos italianos, a fé dos nossos soldados ficou registrada nas páginas dos memorialistas e nos altares construídos pela tropa.
A razão para isso é muito simples. É no calor do combate onde o verniz racionalista escorre do ser humano, deixando nus a soberba e os demais artifícios criados pela filosofia materialista. Quanto mais as ameaças se agigantam, mais a fé torna-se necessária, pois só ela conforta o homem nos momentos de desafio. Isso vale para simples jogadores de futebol em times de várzea, que se reúnem para orar antes e após as partidas — seja qual for o resultado delas — ou para os integrantes de patrulhas de combate da FEB — do tenente ao soldado mais moderno — que muitas vezes se uniam em oração antes das suas incursões na “terra de ninguém”.
Historicamente, inúmeras doutrinas tentaram afastar o ser humano de Deus. Contudo, desde o Positivismo, passando pelo Marxismo, até a promoção do ateísmo — disfarçado de laicismo — nos dias atuais, nada foi capaz de afastar a fé do homem da guerra no seu Criador. Não é à toa que o serviço de capelania militar encontra-se presente nos mais diversos cenários de conflitos, seja nas tropas da OTAN no Afeganistão (link) ou no contingente das Forças Armadas Brasileiras no Haiti. (link).
Para o leigo racionalista, a morte de um soldado encolhido numa trincheira, causada por um projetil disparado a mais de uma dezena de quilômetros, não passa de mero azar ou de uma obra do acaso.
Já o artilheiro reconhece na fatalidade a resultante de uma multiplicidade de fatores: o ajuste do observador, os cálculos da central de tiro, o registro dos elementos de pontaria nos aparelhos da peça, a posição das bolhas de nivelamento, a maior ou menor resistência do solo ante o recuo da sapata da peça, a presença de alguns minúsculos de pólvora — a mais ou a menos — no saquitel das cargas de projeção, o lote de munição propulsora mais potente ou mais fraco, a temperatura do tubo ou da munição estocada, a ocorrência uma lufada de vento imprevisível, a variação de temperatura das diferentes camadas atmosféricas, a aleatoriedade dos rumos dos estilhaços e centenas de outros componentes. Por isso, o artilheiro faz uso de balões de sondagem lançados ao ar periodicamente, consulta os termômetros da pólvora, e até insere as correções de trajetória devido à rotação da terra quando emprega calibres maiores. Porém, o artilheiro reconhece que é quase impossível atingir um ponto fixo com o tiro indireto, ainda que dispondo dos mais avançados instrumentos de pontaria, sem antes empregar uma grande quantidade de munição.
Intuitivamente, até mesmo o soldado semialfabetizado acredita que o seu destino não está nas mãos do artilheiro inimigo, nem pertence ao reino das probabilidades. Sem ao menos desconfiar da complexidade que envolve a técnica de tiro, por um instante o crente entrincheirado durante um forte bombardeio iguala-se ao maior físico da história da humanidade. “Não tenho fé suficiente para ser ateu, pois Deus não joga dados”, escreveu Albert Einstein ao físico Max Born, em 1926, ao referir-se à teoria das probabilidades da mecânica quântica.
Aos olhos do ímpio, a presença de símbolos religiosos no espólio dos mortos em combate seria a prova inconteste da inutilidade da fé em Deus. Nada mais equivocado. Conforme Mascarenhas de Morais expressou ao seu capelão, o homem de fé busca na religião a força para cumprir os seus deveres de cristão e de soldado. A guarda de artefatos religiosos é bem mais um símbolo, um ponto de referência da fé, do que o apego a algo que o torne indestrutível.
Quando ferido com gravidade, em meio aos seus últimos suspiros de vida, a proximidade da morte é aterradora para o ímpio. Já para o crente, é o começo de uma nova vida. Conforme diz um dos versos da antiga canção do soldado brasileiro, dedicada à Virgem da Conceição: “Recebei-nos na hora de nossa morte, Amém”.
Fontes:
http://www.catolicismo.com.br/
[1] Revista do Exército Brasileiro v. 120 N4 outubro\dezembro de 1983, depoimento do Monsenhor Alberto da Costa Reis Pg. 219
[i] Dionísio Cerqueira, Reminiscências da Campanha do Paraguai, Biblioteca do Exército Editora, Rio de Janeiro, 1980. p. 155.
[ii] Projeto Brasilidade, Instituto Cultural GBOEX, Porto Alegre, 1990, vol. I, p. 40
[iii] Dionísio Cerqueira, Op. Cit., p. 181.
[iv] Crônicas da Guerra – A Religiosidade dos Soldados, Cássio Abranches Viotti, edição do autor.p.145.
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Muito interessante e illustrativo este post. Valeu
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Excelente post Durval
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Obrigado. Por engano, acabei publicando uma versão de rascunho. Agora está on-line a versão correta.
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Amigo.
Que linda página da História do Exército Brasileiro!
Obrigada pelo presente que nos enche de orgulho!
Zenaide
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